[51 de 100] As múltiplas possibilidades da literatura, segundo Piglia

coluna51Um livro ficcional acima da média sempre resulta da combinação entre uma ótima história, grandes e densos personagens e o domínio narrativo singular do autor. Há, enfim, uma harmonia, a combinação perfeita desses elementos. Um acontecimento raro, portanto. “Respiração Artificial”, do escritor argentino Ricardo Piglia, é um exemplo disso. Sua engenhosidade, além de muita imaginação, faz do romance uma obra indispensável. Em especial, para quem sonha em ser escritor. Sim, porque o autor faz uma espécie de exercício de criação – e construção –, de linguagem, a partir da não-ficção dentro da ficção. Ou seja, uma história dentro da outra, uma vez que ele desconstrói e reconstrói personagens e histórias, como se tudo fosse um ensaio sobre a arte de escrever. O livro recebeu o prêmio Boris Vian de melhor romance em 1981 e foi eleito um dos dez melhores romances da história da literatura de seu país. No Brasil, foi publicado pela primeira vez pelo selo Iluminuras, em 1987. 

Seu ponto de partida são os diálogos entre o professor de história Marcelo Maggi, um homem experiente e obstinado, e seu sobrinho, Emílio Renzi, filho de sua irmã, que se aventura como seu biógrafo. Maggi fora condenado décadas atrás a três anos de prisão, após ser denunciado pela esposa Esperancita de ter roubado toda a sua fortuna. O fato aconteceu seis anos depois do casamento e ele supostamente fugiu com uma amante, a bailarina de cabaré de nome Coca. Após cumprir a pena, o professor desapareceu no mundo. “Com perfeita calma, sem perder a cortesia gélida, Esperancita denunciou o roubo, movimentou influências, até conseguir que a polícia o encontrasse, alguns meses depois, vivendo luxuosamente, sob nome falso, num hotel de Rio Hondo”, conta o narrador. “A partir daí, pouco se sabe sobre ele; nesse momento, começam as conjecturas, as histórias imaginadas e tristes sobre seu destino e sua vida extravagante; parece que não quis mais saber da família, não quis ver ninguém, como se tivesse se vingando de uma ofensa sofrida.” 

Décadas depois, porém, após a publicação de sua história, narrada em fragmentos de memória, em abril de 1976, Renzi recebeu uma carta do tio, acompanhada de uma foto sua, aos três meses de idade, no colo do parente sumido. Maggi lamentou que o rapaz tivesse se limitado a reunir várias versões que circulavam secretamente, confusas, conjecturais e lhe propõe uma reaproximação para esclarecer uma série de pontos. Aquela teria sido a única “tragédia” de sua família, sobre a qual existem muitas dúvidas? O professor acha que não e passa a manipular o parente rumo a outro sentido ou a uma história que acha mais importante resgatar. A relação entre os dois por meio de trocas de cartas e documentos faz ambos voltarem no tempo, ao século XIX e a seus antepassados, o que permite a Piglia discutir tanto a história de sua influente família, da Argentina quanto a da literatura e, em especial, a própria literatura argentina. 

Na primeira parte da história, desde o início, Maggi faz com que a história se desvie para o outrora poderoso Enrique Ossorio, bisavô de Esperancita, homem de confiança do presidente Juan Manuel de Rosas e que viveu em meados do século 19. Controverso, era, por alguns, considerado um traidor; por outros e por si mesmo, um herói decência e caráter. Além da troca de cartas que passa a acontecer entre eles, o enredo se consolida também a partir de relatos do próprio Enrique, chamados de “papéis de Ossorio”, formados por um conjunto de antigas cartas guardadas entre os segredos de uma família poderosa. Não se sabe ao certo porque os documentos foram guardados, qual era o seu propósito – contar a versal oficial dos fatos e restaurar a honra familiar? Talvez. 

Só quem poderia responder a esse questionamento era Dom Luciano Ossorio, então com mais de 90 anos de idade, pai da agora falecida Esperancita e neto de Enrique. Apesar da idade, sua memória saudável ajudaria, quem sabe, a complementar a história. Por ele, sabe-se, por exemplo, que seu pai morrera em um duelo por honra a seu genitor, Enrique Ossorio, que nem mesmo chegara a conhecer, porque se matou antes de ver o filho pela primeira vez. O propósito de Piglia parece claro nessa engenhosa história: narrar a história de seu país por meio de personagens e fatos que não parecem tão importantes, mas que serve de contexto para algo maior e até grandioso – a saga de um povo e de um país. Um dos meios para isso está em ressaltar a relevância de seus tipos nem sempre heroicos, por meio de fracassos e traições. 

Na segunda parte do romance, depois de uma série de considerações sobre literatura, Renzi e Maggi retomam a caça a mais conhecimentos e documentos para o projeto biográfico dos dois. O primeiro, então, conhece o filósofo Vladimir Tardewski, polonês radicado na Argentina, descrito como alguém sem raízes que assume a narração do livro. Ele e Renzi conversam e fazem reflexões com outros personagens sobre o mundo dos livros e das letras, com considerações interessantes a respeito, por exemplo, da influência europeia na literatura argentina. Depois, o discurso passeia por vários autores, como Domingo Faustino Sarmiento (1811-1888), Jorge Luis Borges (1899-1986) e Roberto Arlt (1900-1942). Por meio de seus personagens, o autor defende a autonomia da criação, o estilo de cada autor etc. 

O crítico e professor brasileiro Sinvaldo Junior, em um indispensável ensaio sobre Piglia, observa que tanto em “Respiração Artifical” quanto em outros livros seus, o argentino abusa das intertextualidades, das referências, das citações, do uso de escritores como personagens, o que poderia colocá-lo como seguidor de Borges. Seu propósito, prossegue ele, seria que os dois personagens da mesma família debatessem as possibilidades de construção de uma “outra” versão da história nacional como chave interpretativa de um presente de opressão política, que acontecia quando o livro foi escrito e publicado. A Argentina vivia sob uma ditadura militar quando Piglia escreveu e publicou seu livro. E o ambiente de pessimismo refletiu explicitamente no modo como os personagens e a própria história do povo argentino foram tratados no romance. 

Nas três últimas décadas, Ricardo Piglia publicou uma série de livros celebrados pela crítica, parte publicada no Brasil pela editora Companhia das Letras, como “Nome Falso”, “Prisão Perpétua”, “A Cidade Ausente”, “Dinheiro Queimado”, “Formas Breves” e “O Último Leitor”. “Respiração Artificial”, porém, destaca-se entre todos por diversos aspectos do seu caráter híbrido. Ana Cecilia Olmos, professora de Literatura Hispano-Americana da Universidade de São Paulo (USP), define-o como “um romance ‘estranho’ (um anti-romance), que condensa experiências históricas e debates em torno da literatura numa instigante reflexão acerca da arte de narrar”. 

Nesse sentido, afirma ela, é uma obra imprescindível, para além das preferências estéticas do leitor, quando se trata de se pensar a ficção produzida na argentina. Sem chegar a mencionar a ditadura militar, observa ela, os narradores fictícios de Piglia se embrenham numa revisão crítica do passado “que desestima a dimensão heroica da história e tenta construir, a partir das derrotas, das traições e dos fracassos, uma explicação válida para o que vem do próprio fundo da história da pátria, ao mesmo tempo único e múltiplo”. 


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