Após o sucesso devastador do livro-reportagem “A Sangue Frio”, de 1965, marco do jornalismo americano da época, sobre o massacre de uma família no estado do Kansas, o jornalista e escritor Truman Capote (1924-1984) anunciou sua intenção de publicar um romance longo em que pretendia radiografar sem firulas a alta sociedade de seu país. E faria isso de modo tão impiedoso quanto “Em Busca do Tempo Perdido”, em que Marcel Proust (1871-1922) retrata a elite francesa no fim do século XIX. Capote jamais cumpriria a promessa, apesar de ter publicado excertos do livro – cerca de duzentas páginas – em revistas e suplementos literários, o que lhe causou o abandono imediato de seus amigos ricos, ali retratados de modo nada lisonjeiro. Até morrer, em 1984, ele teve uma vida de autodestruição implacável por bebida, drogas e práticas sexuais descritas por um de seus biógrafos como “psiquicamente mais danosas”.
Apesar de ser um jornalista famoso e das vendas elevadas de seu mais famoso livro, Capote jamais teve seu talento ficcional reconhecido durante sua vida. Como observa Reynolds Price, no livro que reúne 20 contos do escritor, lançado recentemente pela Companhia das Letras, “suas melhores obras continuam a ser gravemente denegridas por críticos e leitores compreensivamente insatisfeitos”. Um dos pais do “new journalism”, polêmica forma de retratar fatos e personagens com recursos literários que beiram a invencionice, ele foi, sem dúvida, um ficcionista injustiçado. É o que se constata no volume “Histórias Maravilhosas”, lançado no Brasil em 1967 pela Editora Nova Fronteira e fora de catálogo há décadas. A obra reúne dois contos – “Uma Recordação de Natal” e “O Visitante do Dia de Ação de Graças” – e uma novela, “Bonequinha de Luxo”, cuja história foi transposta para o cinema, em 1961, pelo diretor Black Edwards (1922-2010) e transformou a atriz Audrey Hepburn (1929-1993) num dos ícones da moda e da elegância no século XX – posição que ocupa ainda nessa segunda década do século XXI.
As três histórias têm em comum o que poderia chamar de narrativa de memória. Ou seja, parte-se do tempo presente para relembrar um fato ocorrido no passado distante, carregado de nostalgia e saudade. Daí a coerência do título do livro. O primeiro conto remete o leitor a vinte anos antes e à infância do narrador, então com sete anos, à cozinha de um velho casarão da família, em uma cidade do interior da década de 1930. À frente do lugar está uma mulher franzina, com mais de 60 anos, que prepara um bolo de frutas, hábito anual que ela criou para anunciar a proximidade do Natal e o início dos preparativos para o banquete. A dona da casa é uma pessoa que não conhece o mundo. Jamais viajou além de dez quilômetros de casa, nunca comeu em um restaurante ou enviou ou recebeu telegrama. E aquela será a última festa natalina que passarão juntos. A trama seguinte se passa em 1932, época em que o contador retorna para explicar porque diz que nunca conheceu um sujeito tão ruim quanto Odd Henderson, de apenas 12 anos, que é a maldade em pessoa. Os dois eram colegas em uma escola de uma localidade no interior do Alabama, e não se davam bem. Até ele se dar conta que precisava entender seu agressor, cujas causas do temperamento estavam na sua origem familiar.
Duas observações são inevitáveis quando se lê “Bonequinha de Luxo”. Primeiro, comparar o texto original com o do filme. E as mudanças são bem significativas na estrutura da narrativa de ambos. Depois, se a novela e a protagonista de Capote fazem jus à magia do filme e de Audrey Hepburn. Sem dúvida que sim e ajudou o fato da personagem ser muito bem construída pelo escritor e da opção de Edwards em ser bem fiel às suas características. A história original se passa no começo da década de 1940, durante a Segunda Guerra Mundial, quase duas décadas antes da trama levada ao cinema. Se na tela o final é feliz e o casal de protagonistas acaba juntos em um taxi, o livro começa com os dois separados há cerca de 15 anos. Até que Joe Bel, o dono de um bar que eles frequentavam diariamente para usar o telefone, convoca o antigo companheiro de Holly Golightly para ver uma foto da ex-companheira na África – na verdade, a imagem de um busto esculpido que se parece muito com ela.
Bel diz que a foto é uma forte pista que indicara que a senhorita havia se aventurado pela África. Depois dessa conversa, todas as suas memórias sobre a moça voltam e o antigo amigo de Holly decide escrever um livro para contar sua história. No filme, o dono do boteco foi suprimido integralmente. Optou-se por os personagens terem suas próprias linhas telefônicas em casa. A partir desse episódio, a história da Bonequinha de Luxo é contada em forma de flashback. Só então se sabe que o narrador – nunca é citado seu nome, enquanto no cinema ele se chama Paul Varjak –, é um jovem escritor que, durante a guerra, tenta a sorte em Nova York. Ele acaba em um prédio de aluguel barato onde, alguns andares abaixo, mora certa moça jovem e magra, míope e que ganha a vida com muita graça e pouca virtude. Os dois, então, iniciam uma forte amizade e a garota o deixa intrigado com seu estilo de vida fora dos padrões, mas que não o incomoda. Sonhadora e pé-no-chão, ao mesmo tempo que ingênua e indefinível, Holly escapa da vida banal do interior caipira para buscar a liberdade e o prazer na maior cidade americana.
A novela de Capote é descrita como um prodígio de leveza e precisão de texto – que demorou mais que o previsto, por causa da dificuldade do autor em encontrar um final que o agradasse. Há na narrativa, também, um importante caráter transgressor, naqueles primeiros tempos de pré-pílula anticoncepcional e pré-revolução sexual. Holly era uma garota avançada em seu tempo, mas não rara numa sociedade em que a falsa moral fazia parte do jogo de cena das convenções sociais. A anti-heroína levava uma vida moralmente condenável em que recorria à sua beleza e a seu charme para manipular os homens e arrancar deles gentilezas que lhe permitiam levar uma vida de conforto, que incluía restaurantes caros e noitadas em boates de classe média alta frequentadas por homens de posse, que não costumavam levar suas esposas e namoradas para determinados lugares. Por mais que o autor fosse sutil e ponderado, a moça era, de fato, uma garota de programa.
Mas não uma prostituta qualquer, que trocava apenas sexo por dinheiro. Holly ia além do mero negócio sexual. Ela mal passou dos 20 anos e dominava com maestria as artimanhas femininas e sabia identificar as fraquezas do sexo oposto e manipulá-las. Relacionava-se, desse modo, com uma galeria de personagens que inclui até um diplomata brasileiro que se apaixona por ela. E é nesse sentido que se percebe o quanto Capote queria, sem dúvida, transgredir com a personagem. Como ponto de equilíbrio – e encanto –, havia nela, por outro lado, certa ingenuidade, dificuldade em se colocar no mundo, adequar-se a uma vida calma e ordenada, como fazia qualquer esposa. Tanto que uma das suas fontes de renda era pegar o trem toda quinta-feira, às 8h45, e seguir para a prisão de Sing Sing, onde deveria memorizar mensagens cifradas para chefões da máfia, através da previsão do tempo dada por Sally Tomato.
Moça de hábitos e horários nada ortodoxos, Holly tinha personalidade frágil e confusa que buscava nada mais além de sua própria felicidade, que, segundo ela, é um estado de satisfação semelhante a sensação encontrada ao observar as vitrines da Tiffany &Co. pela manhã. A famosa joalheria funcionava como uma espécie de terapia para ela. Costuma ir ao local quando não se sentia feliz, o que normalmente acontecia no começo da manhã. Ela, então, parava com um copo de café e uma rosca e ficava diante da vitrine da loja, ainda fechada, a sonhar com seus produtos, pois não tinha condições de comprar nada. Somava-se a isso o seu senso crítico de achar que diamantes são desnecessários para mulheres com menos de 40 anos.
Era, sem dúvida, mais uma filosofia de vida dessa menina tagarela e cheia de sonhos, sem muita noção das enrascadas que poderia se meter. E essa visão simplória da vida diante de um mundo implacável, machista e muitas vezes cruel, escondida por trás da América glamorosa vendida por Hollywood, que Capote descortina com seu texto de certo refinamento, delicadeza, compaixão e humanidade, aspectos tão contraditórios em sua personalidade.
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