O cineasta espanhol Luis Buñuel (1900-1983) tinha 25 anos quando leu um livro do Marquês de Sade (1740-1814) pela primeira vez. Vivia, então, em Paris. “Foi um choque ainda mais considerável do que a leitura de (Charles) Darwin”, recordou ele, em suas memórias “Meu último suspiro”. Como as obras do escritor francês estavam censuradas e eram raras na época, Buñuel conseguiu emprestado de amigos quatro volumes: “Filosofia da Alcova”, “Diálogo Entre um Padre e um Moribundo”, “Justine” e “Juliette”. Na sua turma, que criou o revolucionário movimento surrealista, André Breton (1896-1966) e René Cravel (1900-1935) eram os únicos a ter “Justine” na estante – o que se tornou motivo de orgulho e cobiça. Quando Cravel se suicidou, o primeiro a chegar à sua casa foi Salvador Dali (1904-1989), seguido de Breton. Na confusão que se seguiu, contou o diretor, uma amiga do artista percebeu que “Justine” havia desaparecido. Alguém se aproveitara do momento para roubá-lo.
Sade se tornou o autor que mais influenciou os filmes do contestador e banido Buñuel. Principalmente nas duas fases mais radicais, nos primeiros anos da década de 1930, e no ciclo mais tardio como diretor, quando desenvolveu com maestria e de forma única uma demolidora crítica à burguesia europeia a partir de elementos surrealistas e até anárquicos. Em “A Idade do Ouro” (1930), por exemplo, o cineasta foi além e incluiu várias citações de textos do escritor maldito francês. “Justine” aparece em fragmentos na maioria de suas inesquecíveis personagens femininas, pervertidas e imorais – “Viridiana” (1961) e “Tristana” (1970) e na protagonista de “A Bela da Tarde” (1967). A observação de Buñuel sobre seu apreço por Sade revela o quanto esse autor amaldiçoado e perseguido ganhou importância ao longo do tempo e que, sem dúvida, teve relevância fundamental para o surrealismo.
O execrado romance “Justine – Os Infortúnios da Virtude” ficou mais de dois séculos inédito no Brasil. Somente em 1989, o Círculo do Livro o publicou, com tradução de Gilda Stuart – o que se tornou um fato curioso, porque, como clube de leitores, com vendas pelos Correios, limitava-se a lançar obras de outras editoras em sistema de parceria. Desde então, não foi mais publicado e continua a ser praticamente ignorado entre os leitores brasileiros, a não ser pela versão em quadrinhos do italiano Guido Crepax (1933-2003), publicado pela Pixel, em 2007. Tanto desinteresse não se explica pela repulsa ao livro e à sua trama que explora o calvário da protagonista. E olha que é considerada a obra menos chocante dentre os textos de Sade. Escrito em apenas 15 dias, de modo compulsivo, nas masmorras da Bastilha, “Justine” pode ser definido como um manifesto contra a virtude, a pureza, a caridade e a religião, tratados de modo extremado e radical, com ênfase na abordagem sexual e no terror psicológico.
O romance se tornou a melhor expressão da genialidade de Sade, de sua intenção em manipular uma história e os personagens para exercitar suas ácidas críticas àqueles que o condenaram a definhar na prisão – o que inclui a Igreja Católica. Tanto que ele coloca como protagonista uma jovem criada para ser o protótipo da donzela cristã virtuosa, submetida às piores humilhações porque teima em não abrir mão de seus princípios morais e religiosos. Por mais que tente praticar boas ações, Justine recebe em troca um castigo pior que o anterior. Uma vida de azares e desgraças que começa quando ela e a irmã perdem, em pouco tempo, os pais. A mais velha, Juliette, de ambição desmedida, resolve sua vida depois de aplicar golpes em nobres ricos. Justine, mais nova e muito religiosa, transforma-se em uma vítima das mais terríveis bestialidades sexuais.
Exemplos? Quando trabalhava para um casal de ladrões em troca de migalhas de pão velho, os dois a obrigam a roubar a vizinha. Como se recusa a fazê-lo, Justine é acusada do sumiço de um diamante dos patrões. Depois de presa, ela foge, mas acaba como criada de um sujeito que a pune com chicotadas e a obriga a envenenar a mãe dele em seu castelo para que receba a herança. Sem sorte, vê-se envolvida com um médico que faz experiências com crianças virgens. Ele a castiga porque Justine descobre o cativeiro de uma das vítimas menores. Depois de amarrada e espancada, a moça tem dois dentes molares e as unhas dos pés arrancados. Ao fugir, a infeliz se abriga em um mosteiro habitado por quatro frades. Não demora e eles se revelam sádicos e mantêm muitas mulheres aprisionadas. Durante anos, a moça é submetida a estupros e chicotadas, para deleite dos religiosos, enquanto faz sexo “por todos os orifícios”, dorme com um diferente toda noite e participa de bacanais.
A pobre heroína se tornou, sem dúvida, uma das personagens que mais sofreram tortura sexual que se tem notícia no mundo da literatura. Considerada uma obra pornográfica e imoral, pois a perversão é uma constante na narrativa, a história de “Justine” foi, sem dúvida, o melhor exemplo do estilo único estabelecido por Sade e que lhe causou perseguição da monarquia do Antigo Regime e dos revolucionários vitoriosos de 1789 e depois por Napoleão. E até hoje o mantém no limbo da literatura, ainda mal visto e pouco lido. Trata-se de um livro principalmente subversivo no qual Sade usa anomalias de comportamento humano por meio do sexo para expressar todo o seu rancor contra a mesma sociedade hipócrita que o perseguiu. Para isso, explora os limites de todas as formas de crueldade que alguém poderia suportar relacionadas às taras sexuais humanas. Acabaria por derivar de seu nome, erroneamente, o termo psiquiátrico sadismo, definição para perversão sexual de ter prazer na dor física ou moral do parceiro ou parceiros.
Mesmo assim, com o tempo, Sade adquiriu alguma respeitabilidade e passou a ser visto não apenas como escritor e dramaturgo. Estudiosos viram nele um filósofo à frente de seu tempo, de ideias originais, que tiveram como base o materialismo do século das luzes e dos enciclopedistas. Como livre pensador, ele recorria ao grotesco para tecer suas críticas morais à sociedade urbana. Seu estilo demolidor atropelava uma mentalidade religiosa estabelecida ancorada em princípios contrários ao que os “bons costumes” da época aceitavam e que continuam, em parte, a se impor até hoje. Embora focasse nas perversões sexuais, ele queria expor que os mesmos homens que sentiam prazer na dor do próximo na cama, por vezes bizarras, não estavam distantes do comportamento que mantinham nas relações sociais do dia a dia, em seus negócios, em suas amizades. Adepto do ateísmo e acusado de fazer apologia ao crime, que incluía enfrentar a religião, Sade se tornou um dos principais autores libertinos de todos os tempos.
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