Antes mesmo que os protestos pelos direitos civis e a contracultura dos anos de 1960 explodissem, havia algo de incômodo na América maravilhada da década de 1950, vendida por Hollywood. O país mais rico do mundo, que explorava a ideia da felicidade completa, da terra das oportunidades, das liberdades e das riquezas, passava por certo inconformismo que a pressão da guerra fria contra a União Soviética procurava esconder. Alguém, no entanto, não estava satisfeito com isso e se recusava aceitar aquele estado de coisas, mas sem qualquer alarde, publicidade ou levante civil. Porque sua vida era uma droga, havia concluído. Esse rebelde era Harry Angstrom, apelidado de Coelho, o protagonista de “Coelho Corre”, do escritor americano John Updike (1932-2009), cuja trama se desenrola no final da década de 1950, em uma América aparentemente satisfeita consigo mesma e pelo sentimento de sua missão histórica.
Aos 26 anos, Coelho não era mais conhecido como uma estrela do basquetebol – chegara a ser uma celebridade na cidadezinha onde nasceu e passou toda a existência. Vendedor de acessórios para cozinha – na verdade, fazia demonstrações da Magi Peeler, máquina destinada a facilitar a vida da típica dona de casa americana. Casado, ele passava por um momento complicado do ponto de vista existencial. A namorada dos tempos de colégio, Janice, vista como uma mulher frágil, desajeitada e alcoólatra, estava grávida do segundo filho do casal. Coelho se deu conta de que não suportava mais a estreiteza que sufocava sua existência cotidiana: a proximidade opressiva de seus pais e dos sogros. Eles moravam nos subúrbios da Pensilvânia. Essa angústia que tomou conta dele o fez sentir que só tinha dois caminhos a seguir: tentar dar uma guinada em tudo ou largar aquela vida e fugir, o que implicaria em um gesto egoísta de abandonar mulher e filhos.
Coelho escolheu a segunda alternativa. Queria correr para bem longe daquela vida que lhe parecia cada vez mais sentido – daí o título do livro. Aproveitou-se do momento em que deveria ir à casa dos sogros buscar o filho Nelson para colocar seu plano em prática. Quando se preparava para sair, Janice o chamou da cozinha, onde preparava o jantar, e lhe pediu para que trouxesse um maço de cigarros para ela. Em seu Ford, Coelho desapareceu na noite cerrada, em uma fuga desesperada na busca pelo que acreditava ser uma vida melhor, de um novo recomeço. Escolheu como direção o estado de Virgínia, mas não conseguiu ir muito longe. Mesmo que usasse de todas as forças para se afastar daquele mundinho medíocre e sem perspectivas – e de suas responsabilidades –, o surtado rapaz acabou em outra cidade pequena e vizinha. Ali, reencontrou seu antigo treinador de basquete, Marthy Tothero, o único que ainda se lembrava de seus antigos dias de glória. O amigo o apresentou a Ruth, uma prostituta, por quem ele se apaixonou, e os dois passaram a viver juntos imediatamente. Ao mesmo tempo, perturbado pela medida radical que tomou e pela culpa, desabafou com o padre Jack Eccles, que tentou convencê-lo a voltar para casa, para a esposa e os filhos.
A conversa com o religioso mexeu com ele. O plano de recomeçar com outra mulher lhe pareceu complicado demais, atormentado por sentimentos de responsabilidade em relação àqueles que deixou. Nesse momento, veio-lhe à mente o orgulho de ser pai outa vez. Assim, abandonou Ruth e retornou para casa pouco antes do nascimento da filha, que se chamaria Rebecca. Traído pelo inconformismo que não conseguia compreender, de não aceitar passivamente aquela vida, Coelho voltou derrotado. Seu gesto tresloucado foi compreendido pela esposa, por seus pais e sogros. Tanto que o pai da mulher lhe ofereceu um emprego no stand de uma loja de departamentos. A inquietação, no entanto, voltou no decorrer da história, com novo desejo de recomeço, sem os obstáculos que tinha imaginado e o forçado a retornar. E o confuso Coelho repetiu o que fizera antes: abandonou a família, reatou com Ruth e, logo depois, fugiu dela outra vez.
Em sua lógica aparentemente sem sentido, suas atitudes impulsivas e irresponsáveis afetaram diretamente a vida das pessoas com quem convivia. Nada disso, entretanto, evita que o leitor sinta simpatia e complacência com o perdido personagem. Talvez porque se identifique tanto com ele, pelo menos em algum momento da vida ou no decorrer de toda ela. Coelho tem muito das pessoas comuns cuja existência parece ser um acúmulo sem fim de responsabilidades e cobranças, marcada muitas vezes por decepções e frustrações consigo mesmo, de não conseguir construir a vida que desejou ou planejou nos primeiros anos da juventude. Como no caso de Coelho, os sonhos parecem correr para longe, de modo a se tornar quase inalcançáveis. No seu caso, porém, ele teimava em correr atrás de algo que não sabia o que era, precisamente. E é essa capacidade de provocar sensações que faz de Updike um grande escritor, adepto da sutileza para retratar, com maestria, os conflitos psicológicos de seu cativante personagem, mesmo com todos os defeitos e transtornos que ele causou.
Considerado pelos críticos como um clássico da literatura americana, “Coelho Corre” pode ser descrito como uma crônica avassaladora do comportamento humano na sociedade conservadora americana dos anos sessenta, pré-revolução sexual, pré-luta pelos direitos civis das mulheres e dos negros. Updike prenunciou toda insatisfação e inconformismo que marcariam essas mudanças radicais, que incluiu também o fim da guerra no Vietnã, patrocinada pelos Estados Unidos. As idas e vindas inusitadas de Coelho fazem de seu romance um livro surpreendente porque Updike consegue convencer de que sua história é totalmente verossímil e possível sobre a trajetória de um americano comum na segunda metade do século XX. Desse modo, ele iniciou seu ambicioso projeto literário de traçar um panorama realista e crítico da vida norte-americana ao longo de três turbulentas décadas, que resultaria na série de quatro romances focados sempre na vida desse homem que é Harry Angstrom, o Coelho. Foram eles: “Coelho em Crise” (1971), “Coelho Cresce” (1981) e “Coelho Cai” (1990).
A criativa e contundente forma de contar a vida de Coelho demonstrada por Updike faz a diferença entre os autores que exploraram temas importantes para a época em que viveram. No seu caso, a sexualidade, os relacionamentos amorosos, o casamento, a busca de sentido em uma existência cada vez mais desprovida de valores – características que o fazem atualíssimo na segunda década do século XXI. Difícil imaginar a literatura americana desde a publicação de “Coelho Corre” sem sua prosa tão estimulante à reflexão que influenciou tantos outros autores. Embora não seja popular no Brasil como Paul Auster ou Philip Roth, há quem coloque Updike até mesmo acima desses e de outros grandes escritores que conseguem, com independência crítica, capturar a alma e a essência do povo americano.
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