[56 de 100] A vida termina em solidão, segundo Carson McCullers

DIGITALIZAR0006O livro mais famoso da escritora americana Carson McCullers (1917-1967) no Brasil é, certamente, “A Balada do Café Triste”, uma reunião de contos dentro da tradição americana de explorar com sensibilidade e certa melancolia a vida cotidiana de americanos anônimos, que vivem longe do glamour de Hollywood. Teve várias edições pela Artenova, Globo e L&PM. Mas ela escreveu grandes romances que tratam do universo feminino, com ênfase nos relacionamentos e na sua opinião sobre esse tema. Como “A Sócia do Casamento”, “Reflexos num Olho Dourado” e “Coração Hipotecado”. O mais notável deles é, sem dúvida, “O Coração É um Caçador Solitário”, ambientado em uma cidadezinha do sul dos Estados Unidos, no final dos anos de 1930. Nessa época difícil da vida americana, McCullers explora, como pano de fundo, os efeitos do desemprego que ainda se faziam sentir em grande parte da população da Depressão econômica deflagrada pela quebra da Bolsa de Nova York, em 1929. 

Um dos personagens principais é Biff Brannon, dono de um restaurante que nunca fecha. Mick é uma garota forçada a pular abruptamente da infância à idade adulta, enquanto o agitador marxista Jake Blount faz barulho com política e o médico negro Benedict Copeland atende de graça os pacientes pobres e luta pela igualdade de raças. Essas figuras tão singulares servem para um propósito principal da autora: retratar, por meio deles, além da carência material provocada pela falta de dinheiro, o flagelo da solidão e da incomunicabilidade deles diante do mundo e das relações pessoais. McCullers se mostra tão jovem uma narradora sofisticada, com um romance de estreia que justifica seu talento nato de narradora. Ela estabelece como centro dessa narrativa, publicada em 1940, quando tinha apenas 23 anos de idade, uma estrutura em que cada capítulo assume o ponto de vista de um personagem. Como o mudo John Singer, descrito pela autora como um homem triste e solitário que, por sua serenidade enigmática, é visto como um santo pela comunidade. 

“O Coração É um Caçador Solitário” começa com a descrição dos dois únicos cegos da cidade, que sempre estavam juntos, mas, nem por isso, conseguiam estabelecer uma comunicação fluente entre ambos. “Todo dia, de manhã cedo, eles saíam da casa onde moravam e iam para o trabalho andando de braços dados pela rua. Os dois amigos eram muito diferentes um do outro”. O que sempre guiava o caminho era um grego obeso e meio aéreo, distraído. “No verão, ele usava uma camisa pólo amarela ou verde, enfiada com desleixo por dentro da calça na frente, e solta atrás. No tempo mais frio, ele usava por cima disso um suéter cinza esgarçado e disforme. Seu rosto era redondo e oleoso, suas pálpebras estavam sempre semifechadas e seus lábios se curvavam em um sorrisinho gentil e idiota. O outro mudo era alto. Seus olhos tinham uma expressão alerta e inteligente. Ele estava sempre impecável e se vestia com muita sobriedade.” 

Como próprio título diz, “O Coração é um Caçador Solitário” trata da dificuldade de interação, de estabelecer relacionamentos até mesmo de amizade e que leva às desilusões amorosas, à solidão urbana a que a maioria dos moradores parece condenada, mesmo cercada de gente, por causa das muitas barreiras que costumam construir em torno e entre si. Com delicadeza, McCullers não fala apenas de sentimentos amorosos, mas do mundo à volta dos personagens, o que os torna infelizes dentro de um contexto desfavorável dos pontos de vista social e econômico. “Todas as manhãs os dois amigos caminhavam em silêncio lado a lado até a rua principal da cidade. Então, quando chegavam a certa loja de doces e frutas, paravam por um momento na calçada do lado de fora. O grego, Spiros Antonapoulos, trabalhava para o primo, que era dono dessa loja de frutas. Seu trabalho era fazer balas e doces, desencaixotar as frutas e manter o lugar limpo”. O mudo magro, John Singer, quase sempre botava a mão no braço do amigo e olhava para seu rosto por um instante antes de ir embora. “Depois dessa despedida, Singer atravessava a rua e ia andando sozinho até a joalheria em que trabalhava como gravador de artigos de prata.” 

A amizade entre os cegos não necessariamente significava cumplicidade entre eles. Havia certo sentido de mecânico, da simples dependência. A dificuldade de integração e interação entre os dois serve para a escritora enfatizar a sensação aguda, quase desesperadora, de estar só que ela queria dar ao livro. Faz isso por meio dos tipos marginais que ela criou: um mudo, um negro erudito e promissor em uma época de racismo explícito, uma menina, um comunista – tipo nocivo, perigoso para a época, além de ameaça à democracia americana – e o dono de um restaurante. Todos vivem em um tempo de extrema pobreza e de exclusão pela cor da pele. O contexto é um elemento importante para eles se sentirem tão isolados e fechados em seus próprios mundos. Ficar só não é uma questão de escolha, mas algo imposto pelo destino quase intransponível para se chegar a uma felicidade mínima idealizada. 

Nascida no estado da Geórgia e batizada com o nome de Lula Carson Smith, Carson McCullers estudou na célebre Juilliard School of Music, onde foi preparada pelos pais para ser uma exímia pianista, já que viam talento nela. Mas a moça desistiu da carreira por causa das crises de febre reumática que a atormentavam quando tocava. Casou-se aos 21 anos com James Reeves McCullers (1913-1953), que lhe deu o sobrenome de escritora e com quem teve uma relação conturbada, que culminou no suicídio dele, aos 40 anos de idade. Depois de estudar literatura na Universidade de Columbia, ela se tornou uma autora respeitada ainda bem jovem. “As histórias dentro da história de ‘O Coração É um Caçador Solitário’ incluem alguns dos escritos mais bonitos que McCullers já produziu”, observou a revista “The New Yorker”, em 2001, ao comentar, mais de seis décadas depois, sua reedição. Eleito pela revista “Time” um dos melhores romances em língua inglesa dos últimos oitenta anos, o livro foi adaptado para o cinema em 1968 pelo diretor Robert Ellis Miller. 

Conhecida pelo talento em compor personagens fortes e inesquecíveis e conseguir o contraponto à “efervescência da alma” e a mesmice do ambiente, Carson McCullers se mantém original e surpreendente ao conseguir estabelecer em sua escrita uma ótica particular para cada um dos integrantes de suas tramas. E por construir uma atmosfera tida como densa e mágica, perpassada de musicalidade e lirismo, como observa uma de suas edições brasileiras. Ela consegue tudo isso sem deixar de lado o humor e a objetividade de se contar uma boa história, cheia de inquietações e ansiedades que marcam a vida de todos nós. “Encontrei em seu trabalho uma intensidade e uma nobreza de espírito que não tínhamos em nossa prosa desde Herman Melville”, escreveu sobre ela o escritor e dramaturgo Tennessee Williams (1911-1983). “Deve estar certa, pela abundância cada vez maior de provas, de que o trabalho realizado por ela não será eclipsado, mas antes iluminado pelo tempo”. E assim aconteceu.

 

 


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