[60 de 100] A aflição de existir e de conviver, segundo Jean-Paul Sartre

No seu “Pequeno Dicionário de Termos Literários” (Editora Três, 1984), João José de Melo Franco define o existencialismo como a filosofia que se volta para a essência do indivíduo. “Desde Aristóteles (384 A.C.- 322 A.C.), passando pelo ‘Velho Testamento’, tornou-se uma tradição no pensamento ontológico”. Outros dicionaristas afirmam que se pode encontrar seus precursores em pensadores milenares ou seculares como Sócrates (469 A.C.-399 A.C.), Santo Agostinho (354-430), Maine de Biran (1766-1824) etc. Em sentido restrito, porém, sua origem remonta ao filósofo e teólogo dinamarquês Søren Aabye Kierkegaard (1813-1855), considerado como o pai do movimento. Mas foi na primeira metade do século XX que o movimento passou a ter formas literárias, diz Franco, “ao usar o romance e o teatro como meios de expressão ou instrumento do pensamento filosófico, pois o existencialismo e a arte literária têm uma identificação básica, ou seja o desvelamento da existência.” 

Em outros termos, o existencialismo destaca elementos como a liberdade individual, a responsabilidade e a subjetividade, uma vez que considera cada homem um ser único, dono dos seus atos e do seu destino. Na literatura, fez a cabeça principalmente de dois importantes autores franceses, Albert Camus (1913-1960), que ganhou o Nobel de Literatura em 1957, e o transgressor Jean-Paul Sartre (1905-1980), que, devido as distinções e as funções oficiais, recusou-se a receber o Nobel em 1964, único acontecimento na história do cobiçado prêmio. Sartre, após ter feito estudos sobre fenomenologia na Alemanha, criou o termo a partir da palavra francesa “existence” como tradução da palavra alemã “Dasein”, expressão empregada pelo alemão Martin Heidegger (1889-1976) no livro “Ser e Tempo”. Sartre acreditava que “no caso humano (e só no caso humano) a existência precede a essência, pois o homem primeiro existe, depois se define, enquanto todas as outras coisas são o que são, sem se definir e, por isso, não possui uma ‘essência’ posterior à existência.” 

Apesar das profundas diferenças de doutrinas, os existencialistas concordavam que o pensamento filosófico começa com o sujeito humano. Não meramente o sujeito pensante, mas as suas ações, sentimentos e a vivência de um ser humano individual. Na escrita existencialista, o ponto de partida do indivíduo é caracterizado pela “atitude existencial”, pela sensação de desorientação e confusão face a um mundo aparentemente sem sentido e absurdo. Em síntese, o homem é responsável por aquilo que é. A autonomia da liberdade, fundamental para a compreensão da teoria sartreana do “ser-para-si” (a consciência), permite que o indivíduo crie seus valores. E o valor da vida é o sentido que cada um escolhe para si. Essa corrente se tornou bastante popular após as guerras mundiais e chegou até a contracultura americana e europeia, na virada para a década de 1970, como maneira de reafirmar a importância da liberdade e da individualidade das pessoas. Sartre se tornaria um guru desses jovens dos anos de 1960. 

As ideias e conceitos do escritor e pensador francês foram formalizados nos livros “O Ser e o Nada” (1943), sua principal obra filosófica, e “O Existencialismo é um Humanismo” (1946). Muito antes dessa teorização, porém, em 1931, ele começou a escrever “A Náusea”, seu primeiro romance, influenciado pelas teorias fenomenológicas preconizadas pelo filósofo alemão Edmund Husserl (1859-1938), para quem o estabelecimento da realidade deve ser privilegiado pelo ponto de vista do ser humano. Mas foi no Instituto Francês de Berlim que deu um passo adiante em sua pesquisa para sua ficção, ao mergulhar nos textos de Heidegger e de Karl Jaspers (1883-1969) sobre o vazio e a angústia da existência. Esses dois aspectos são pontos fundamentais na estruturação da trama ficcional de “A Náusea”, que ele levou alguns anos para concluir e só foi publicado em 1938. 

Escrito quando o autor ensinava no Liceu de Le Havre, o romance chamaria atenção por trazer um rigoroso embasamento filosófico, em que a história foi estruturada para estimular a reflexão e levantar questões sobre a existência. O livro não permite uma leitura facilmente digerível ou de fluência. Ao contrário, tem um texto denso, que logo e se transforma em um desafio instigante, à medida que testa as reações mentais e até físicas do leitor, pelo estímulo aos sentidos de quem lê a história do historiador francês Antoine Roquentin. Ele é um solteirão de 35 anos que, após abandonar um emprego na Indochina, tenta recomeçar a vida na imaginária cidade portuária de Bouville. Ao estilo dos romances dos séculos XVIII e XIX, o livro começa com uma nota falsa dos editores para explicar a origem do texto – anotações em um caderno que teria sido encontrado entre os papéis de Roquentin. “Publicamo-los sem nenhuma alteração”, observaram. “A primeira página não está datada, mas temos boas razões para supor que ela antecede de algumas semanas o início do diário propriamente dito”. Teria sido escrita, portanto, o mais tardar, por volta de janeiro de 1932. 

Nessa época, explicam eles, após viajar pela Europa Central, África do Norte e Extremo Oriente, o personagem se fixara havia três anos em Bouville, para lá concluir as pesquisas históricas que vinha fazendo sobre o Marquês de Rollebon, da Corte de Luiz XVI. A narrativa, portanto, segue como um diário até o fim do romance. Solitário, observador e introspectivo, Roquentin vai do delírio à megalomania: absorver o conhecimento integral lendo toda a biblioteca da cidade, seguindo a ordem alfabética dos autores encontrados em seu acerto. O personagem, por isso, dizem os críticos, representa a impotência de certa cultura enciclopedista diante da qual se mostra cético. Mal começa a pesquisa e ele se sente desestimulado pela história do marquês e pela sociedade de Bouville. Sem amigos, passa a se relacionar com a dona do café Rendez-Vous dês Chemenots, que fica perto de onde mora. Até descobrir que ela tem vários amantes e que ele é só mais um deles. Logo em seguida, reencontra a antiga namorada, Anny, que não via fazia quatro anos. 

Todas essas experiências são intercaladas por uma rotina que começa a ficar aflitiva, em que Roquentin parece viver uma espécie de descontrole emocional e depressivo que lhe causa náuseas. Por causa do sentimento de vazio que toma conta dele, essa sensação provoca uma ruptura consciente com as pessoas com quem se relaciona e com o mundo. As sensações mais intensas do enjoo, comparáveis a lampejos místicos, ocorrem quando ele se encontra em aglomerados, nas ruas e nas praças. A aflição do leitor com essa condição é inevitável. Ao sentir uma estranha aversão ao ser humano e sua condição existencial, o protagonista parece se aproximar da loucura. Mas tem raciocínios lógicos ao refletir que a existência humana é sem sentido. Ele acredita que, pela falta de essência, o indivíduo se torna cada vez mais iludido e busca por vários mecanismos para que sua existência se torne mais suportável. Mesmo assim, para ele sua liberdade física e mental é inútil. As ocupações que os seres humanos procuram, afirma ele, na realidade, são como artimanhas para disfarçar a angústia que todos possuem. Até concluir que não há nenhuma razão para existir e, mesmo assim, todos comem e bebem para conservar nossa própria existência. 

O título original de “A Náusea”, recusado pela editora, seria “Melancolia”, uma referência à gravura de Albrecht Dürer (1471-1528), que também inspirou Goethe, em “Fausto”. Com sua impressionante e repulsiva história, Sartre apresentou as conclusões éticas de seu estudo sobre a fenomenologia. Marco do movimento existencialista, o romance foi considerado pelo autor e pela crítica, como seu livro mais perfeito. A obra provocou furor na geração do pós-guerra por espelhar o mal-estar daquela época, marcado por uma falta de perspectivas e de futuro, diante de uma provável guerra atômica entre Estados Unidos e União Soviética. Nem por isso perdeu o impacto. E merece o status de clássico. Roquentin consegue simbolizar uma geração que descobre a ausência de sentido da vida e tem de lidar com todos os desdobramentos que essa experiência suscitaria. O que poderia ser mais atual? 


Comentários

Uma resposta para “[60 de 100] A aflição de existir e de conviver, segundo Jean-Paul Sartre”

  1. Avatar de Ricardo Benedito
    Ricardo Benedito

    Essa definição inicial de existencialismo não poderia ser pior! O existencialismo foi justamente uma negação do essencialismo!

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