Se alguém ou alguma publicação ou instituição se propor a escolher os dez livros de ficção mais influentes do século XX, “Laranja Mecânica”, de Anthony Burgess (1917-1993), lançado em 1961, certamente fará parte da lista. E estará entre os primeiros, ao lado de “A Metamorfose” ou “O Processo”, de Franz Kafka (1883-1924). O romance já era importante e conhecido quando sua versão para o cinema dez anos depois do seu lançamento pelo diretor Stanley Kubrick (1928-1999) se transformou instantaneamente em um dos acontecimentos das telas em toda a história do cinema. O livro de Burgess se tornou referência para uma geração de artistas e continua a fazê-lo, na segunda década do século XX. Escritores, cineastas, estilistas de moda, decoradores, arquitetos, dramaturgos e intelectuais de modo geral beberam na estética temática e visual do livro e do filme. Uma explicação para isso está na perenidade da discussão proposta pelo autor. Como diz a edição brasileira da Aleph, sua eternidade vem da essência daquilo que define os seres humanos: a capacidade de discernimento e a liberdade de escolha. Temas presentes. Sempre. Eternos, portanto.
O romance se encaixa no conceito de distopia, definido como o pensamento, a filosofia ou o processo discursivo baseado em uma ficção cujo valor representa a antítese da utopia ou promove a vivência em uma “utopia negativa”. São geralmente obras caracterizadas por tratar do totalitarismo, do opressivo controle da sociedade, como se vê em clássicos como “A Doença Branca” (Karel Capek), “Admirável Mundo Novo” (Aldous Huxley), “1984” (George Orwell) e em “Fahrenheit 451” (Ray Bradbury), todos lançados antes de “Laranja Mecânica”. Esses títulos têm em comum o desmascaramento de regimes repressores, em que, durante a história, “caem as cortinas” e se revelam não só repressores como corruptíveis, em benefício de uma minoria que detém o poder pela força. Outro aspecto desse gênero está no fato de que a ciência ou a tecnologia é usada como ferramenta de controle, seja do Estado seja de instituições ou mesmo de corporações. Assim, esses autores costumam compor manifestos sobre os perigos da manipulação da informação e da falta de liberdade como avisos ou sátiras. Nesse aspecto, diferem contrariam o conceito de utopia, que prega a um sistema social idealizado e não tem raízes na sociedade atual, figuram em outra época ou tempo ou após algum grande retrocesso histórico.
Burgess escreveu seu romance no momento mais dramático de sua vida, no começo da década de 1960, quando, erroneamente, diagnosticaram câncer em seu cérebro. Para não deixar a esposa desamparada, pôs-se a trabalhar desesperadamente, movido pelo medo de morrer antes de concluí-lo. A ideia do romance nasceu de um fato real ocorrido em 1944, quando sua primeira mulher foi estuprada por quatro soldados norte-americanos. Dividido em três partes, cada uma com sete capítulos, o livro tem 21 capítulos, como gesto intencional de simbolizar os 21 anos de idade como um marco na maturação humana. Em sua história, os soldados estupradores viram uma pequena gangue em uma Inglaterra de futuro não muito distante, que vive um grave problema da cultura de extrema violência juvenil, praticada, no caso, pelo narrador do romance, um adolescente desajustado que sente prazer em agredir e até matar as pessoas, o lunático e cruel Alex, uma espécie de filósofo do caos que promove arruaças, intimidações, brigas, estupros e assassinatos.
O rapaz não é um animal social desajustado qualquer. Sociopata e delinquente juvenil incorrigível, também é inteligente e perspicaz, com gosto sofisticado para a música, principalmente pela clássica e por Beethoven, que chama de “Ludwig Van”. Tem uma visão clara do mundo e da sociedade e faz interessantes observações sobre tudo e todos. Alex, curiosamente, é o protótipo do que se chamaria de metrossexual, apesar de sua faceta desajustada e violenta. É capaz de fazer meticulosas descrições sobre moda, por exemplo, ao descrever as garotas de sua época. “Tinham ainda vestidos pretos muito longos e retos, e na parte bombada usavam crachazinhos tipo assim de prata com nomes de maltchicks em cada um”. Adora ler romances de ficção. Ao encurralar um velho professor que carrega uma pilha de livros e está prestes a agredir, ele diz, a seu estilo: “Interessar-me-ia enormemente, irmão, se gentilmente me permitisses ver que livros são esses que tens debaixo do braço. Nada mais me agrada neste mundo do que um livro bom e decente, irmão”. E leva a vida assim, até ser preso após violentar e causar a morte de uma mulher e ser condenado à prisão por assassinato.
Na cadeia, a vida de Alex se torna um inferno. Os colegas de cela o culpam de bater até a morte em um companheiro problemático. Para não ter sua pena agravada, ele concorda em submeter-se a uma modificação de comportamento experimental, o Tratamento Ludovico, forma de terapia de aversão em que ele recebe uma injeção que o faz se sentir mal enquanto assiste a filmes violentos graficamente, eventualmente condicionados para que ele sofresse crises incapacitantes de náuseas com a simples ideia de violência. Por acidente, após ouvir a trilha sonora de um filme que apresenta a Nona Sinfonia, de Beethoven, o rapaz se torna incapaz de deleitar música clássica. A eficácia do tratamento é demonstrada a um grupo de doutores, que assiste como Alex desmaia antes de um valentão ridicularizá-lo e humilha-se diante de uma jovem mulher com pouca roupa, cuja presença tem despertado suas predadoras inclinações sexuais. O capelão da prisão, então, acusa o Estado de retirar do jovem o direito ao livre-arbítrio, mas os funcionários do governo consideram a experiência um sucesso e devolvem o rapaz para voltar a viver em sociedade.
Na terceira e última parte do romance, Alex tem de pagar por seus pecados sem poder reagir, em sucessivos reencontros com suas vítimas, que se vingam dele na mesma moeda. A punição, na verdade, começa em casa. Ele descobre que os pais alugaram seu quarto para um inquilino e ele passa a vaguear pelas ruas como um sem teto, enquanto aumenta a vontade de tirar a própria vida. Em uma biblioteca pública, procura nos livros uma forma de se matar sem dor. Quando está sendo espancado por ter feito mal a um professor, dois policiais tentam ajudá-lo, mas se voltam contra ele – são dois ex-membros de sua gangue, um deles seu rival. Ambos o levam para fora da cidade e o espancam. Para a sua sorte, no primeiro momento, o dono da casa de campo que o acolhe – o mesmo cuja esposa fora estuprada e morta por sua gangue – não o reconhece porque ele usava máscara. E o rapaz fica sabendo que ela morreu por causa das agressões. O homem, o escritor F. Alexander, sem fazer ligação entre a morte da mulher e o jovem, abriga Alex e o interroga sobre o seu condicionamento mental. Crítico atuante contra o governo, Alexander pretende usar sua terapia como propaganda para mostrar a brutalidade do Estado e, desse modo, evitar que o atual governo seja reeleito. Um dos sócios radicais de Alexander consegue extrair uma confissão de Alex depois de removê-lo da casa do escritor e o submete a tortura por música clássica. E a história segue com ele no centro de uma disputa política, regada a violência.
“Laranja Mecânica” é, à primeira vista, um romance de difícil leitura porque o autor inventou uma linguagem em gírias para ser falada por adolescentes que causa estranhamento por causa dos termos eslavos (mistura do russo e do inglês, chamada de “Nadsat”) e palavras rimadas – que exigem dedução para o entendimento. Para facilitar, a maioria das edições do romance é acompanhada de um glossário. Cada linha traz pelo menos uma palavra completamente desconhecida. Com o correr das páginas, porém, o leitor começa a se acostumar e a perceber que a compreensão não é prejudicada por isso – sem contar que Burgess foi genial ao ajudar na dedução dos significados. O escritor explicou em uma entrevista que o título veio da velha expressão “cockney, as queer as a clockwork orange”, traduzida como “tão bizarro quanto uma laranja mecânica” – que muitos entenderam como a denominação de uma engrenagem que tritura cérebros por meio de lavagem cerebral ou hipnotismo.
Toda a simbologia do romance gira em torno do direito de escolha do cidadão sem interferência, manipulação ou indução por parte do Estado. Burgess escreveu um manifesto pela a liberdade da própria pessoa em controlar os pensamentos de modo consciente como uma dádiva divina que não deve ser privada por interesses particulares ou ditos coletivos. Um momento apontado nesse sentido é quando Alex se inscreve no tratamento Ludovico, mas não demora a perceber que nada vale a pena em troca de sua liberdade de manifestação. Tudo isso foi estrategicamente pensado pelo autor e permite perceber que seu romance foi uma obra cuidadosamente elaborada e estruturada, pensada com a meticulosidade necessária para se construir um pequeno e funcional relógio. E para ser a sua obra-prima, como de fato ocorreu.
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