[67 de 100] O destino sempre manda recado, segundo James M. Cain

destinoTrata-se de um livro pornográfico sobre crueldade e traição. Mais do que a respeito de um trágico e fulminante caso de amor entre uma mulher casada e um forasteiro de índole duvidosa. Pelo menos assim “O Destino Bate à Sua Porta”, do escritor americano James M. Cain (1892-1977), foi recebido e censurado tão logo chegou às livrarias americanas, em 1934. Chocou tanto as autoridades locais, que foi acusado de imoral e proibido de circular na cidade de Boston. Cain queria mostrar uma combinação original e explosiva, que seria copiada exaustivamente por livros e filmes nas duas décadas seguintes. Para isso, inverte em seu romance o papel do mocinho e do bandido. Sua história é protagonizada por dois vilões. Não há heróis, a não ser a justiça, que triunfa. À frente está Frank Chambers, um vagabundo andarilho sem apego a nada, que vive um dia após o outro. Até que chega a um modesto posto de gasolina e de restaurante de beira de estrada, na Califórnia, e, no momento seguinte, consegue um emprego, motivado pelas curvas e pela beleza de Cora, a esposa do dono do local, o grego Nick Papadakis. Ela é descrita como uma mulher bonita, voraz e carente. Logo os dois passam a discutir como fazer para tirar o marido inconveniente do caminho. 

Com um texto seco e direto, trama irretocável, caracterização impecável dos personagens e ambientação visual e cinematográfica, Cain faz o leitor se imaginar dentro de um filme. Tudo isso ajudou a fazer de seu livro um clássico, talvez o maior romance policial americano “noir” já escrito, graças a seu realismo, que alguns confundem com imoralidade – por causa do erotismo e da falta de caráter dos protagonistas. Mas o trunfo maior está no desenvolvimento da história. O autor tortura os dois personagens, ao colocá-los nas mais insólitas situações, de modo a convencê-los de que não é tão simples eliminar uma pessoa e sair impunemente. Ou seja, cometer o crime perfeito. Assim, surgem em seu caminho acasos irônicos e imprevistos que atormentam os planos da dupla e podem ser decisivos para o êxito ou não do assassinato de Nick. A dupla tenta provocar um escorregão – a vítima cai da banheira e quebra a cabeça, mas sobrevive. Por fim, provocam um acidente de estrada, o carro capota na ribanceira. Tudo parecia funcionar. Até a polícia saber que havia um gordo seguro de vida em nome da viúva e que ela desconhecia e ela se torna suspeita. 

Essas empreitadas criminosas são descritas de modo rude e amoral por Cain. Seus protagonistas são frios, sórdidos, indiferentes e agem por pura maldade, sem remorso. No esforço de tentarem a satisfação imediata de seus desejos, os dois estão dispostos a fazer qualquer coisa, como chantagear, extorquir e matar, sem qualquer hesitação. Frank e Cora sabem que podem ser punidos por isso, mas faz parte do jogo. É preciso jogar, enganar as autoridades e ganhar. Esse modo como o casal vê a si mesmo e aos outros faz com que o leitor não tenha compaixão dos dois. O romance diz mais. No ponto mais crítico da depressão americana, após a quebra da bolsa de Nova York, em 1929, em um país que havia perdido as esperanças, com desempregados famintos a perambularem pela América, Cain escreveu uma história densa e intensa que é um dos mais dramáticos retratos de seu tempo. Principalmente ao explorar a personagem feminina, ponto central de um triângulo amoroso, embora uma das partes, seu marido, desconhecesse isso. 

Acima dos atos condenáveis de Frank e Cora está uma história trágica sobre desilusão pela vida, de desapego a valores e de degradação moral. Cain construiu uma trama de paixão às avessas, sobre a descrença no amor. O título original, “The Postman Always Rings Twice” foi genialmente traduzido para o português brasileiro, com o mesmo sentido, só que mais poético, dramático, apelativo, porém brilhante. O autor brinca com a ideia de que o destino deu muitas pistas para que os dois futuros assassinos percebessem que seu plano ia acabar errado. Não dar ouvidos ao carteiro foi o que Frank e Cora teimosamente não fizeram. Daí a moral da história: avisos para que se busque outra via para uma vida correta. Mas ele parece perceber, mas está determinado a seguir para o lado do mal. 

O escritor americano chama atenção por introduzir novos elementos ao longo de todo o livro, cada vez mais perturbadores. Assim, uma história que parecia extremamente simples, vai ficando complicada e, em especial, perturbadora. Porque sua intenção é provocar sensações no leitor, como em jogo. Além de uma história de amor não convencional, torna-se também uma história psicológica e densa sobre a loucura, como observou Caio Fernando Abreu, em uma resenha de 1984. Ou seja, a respeito da dissociação entre consciente e inconsciente, sobre esquizofrenia, sobre divisão de personalidade. “O Destino Bate à Sua Porta”, ressaltou ele, trata também de certa magia, pois pareceu estranho que um gato interferisse no momento do primeiro crime e que outro gato (mas não um gato comum: um puma) venha a participar de alguma forma do segundo. “É estranhíssimo que antes de Nick levar a pancada na cabeça, da segunda vez, tenha soltado um agudo que o eco responde depois que ele está praticamente morto. Como se, mesmo depois de morto, o que foi vivo continuasse de alguma forma tendo reflexos no real”. 

O Nobel de Literatura, o francês Albert Camus (1913-1960) se apaixonou pelo livro de Cain e se inspirou para compor sua obra-prima, “O estrangeiro”. Especificamente, a passagem em que Frank medita na cadeia. De fato, algumas reflexões que o prisioneiro Mersault faz, no livro de Camus, são parecidas. O livro rendeu inesquecíveis adaptações para o cinema, com maior ou menor fidelidade ao texto original. A primeira delas é francesa e está esquecida: “Paixão criminosa”, de Pierre Chenal, de 1936. Sete anos depois, Luchino Visconti estreou na direção de um longa-metragem com sua visão pessoal da obra, intitulada “Obsessão”, em que lhe dá toques que antecipariam o neorrealismo cinematográfico dos anos de 1940 e 1950. A terceira, de 1946, que muitos críticos consideram a melhor, tem John Garfield e Lana Turner como protagonistas e direção de Tay Garnett. Por fim, em 1981, Bob Rafelson dirigiu Jack Nicholson e Jessica Lange nos papéis de vilões da história, em um filme inesquecível também, principalmente pela liberdade de dar ênfase ao erotismo. Para quem não viu nenhum, a recomendação é ler o livro antes.

 


Comentários

3 respostas para “[67 de 100] O destino sempre manda recado, segundo James M. Cain”

  1. Avatar de Carlos Cabús Oitavén
    Carlos Cabús Oitavén

    No filme de 1946 talvez tenhamos as melhores atuações das carreiras de John Garfield e da belíssima Lana Turner.

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