[73 de 100] Alegoria do psicodelismo tupiniquim, segundo José Agrippino de Paula

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 No prefácio que escreveu em março de 2001 para “PanAmérica”, do escritor paulistano José Agrippino de Paula (1937-2007), lançado originalmente em 1967, o compositor e escritor Caetano Veloso ressalta com entusiasmo a importância que esse nada convencional romance teve para ele e para o movimento do tropicalismo. O volume seria, segundo o artista, um precursor literário para o evento musical do qual foi o protagonista maior. “Antes do lançamento de qualquer uma das canções tropicalistas, tomei contato com ‘PanAmérica’. O livro representava um gesto de tal radicalidade – e indo em direções que me interessavam abordar no âmbito do meu próprio trabalho – que, como já relatei no (meu) livro de memórias ‘Verdade Tropical’, quase inibiu por completo meus movimentos”. Ainda hoje, quando o relê, acrescentou o compositor, percebe que o texto guarda seu poder de impacto. “É um caso único na literatura brasileira. Essa epopeia do império americano, como Mario Schenberg (1914-1990) a chamou – na apresentação da primeira edição –, é um livro marcante.” 

Agrippino de Paula parecia falar por metáforas em seu experimento literário, aparentemente delirante. “Eu sobrevoava com meu helicóptero os caminhões despejando areia no limite do imenso mar de gelatina verdade”, começa ele, na abertura do volume. Mas havia mais que isso. Ele se mostra, acima de tudo, um exímio escritor, fora do comum com domínio narrativo e de construção de uma história, mas que, como um Salvador Dali (1904-1989) ou um Pablo Picasso (1881-1973), mestres da perfeição realista nos primeiros tempos de pincel, descontrói e distorce o método convencional da escrita para fazer uma bem armada alegoria colorida que melhor representava o psicodelismo da época e que a ditadura tentava a todo custo impedir de chegar ao País. “PanAmérica” é um liquidificador de tendências e movimentos mais vanguardistas da década de 1960, como pop art norte-americana, o cinema marginal brasileiro, os happenings da contracultura, os movimentos pelos direitos civis, a revolução sexual, a guerrilha anti-imperialista, o kitsch popular, a denúncia contra a ditadura. 

Em um veredicto sem medo de cometer exagero, pode-se dizer que a cultura brasileira da época não teria sido a mesma sem o livro de Agrippino de Paula. “Sobrevoei a praia que estava sendo construída e o helicóptero passou sobre o caminhão de gasolina, onde o negro experimentava o lança-chamas”, anota ele, em seguida, na introdução. Para Caetano, seu texto, além de evitar toda nuance psicológica na construção de personagens e aderir às imagens exteriores e aos atos diretos, “apresenta uma áspera uniformidade que se torna áspera nas páginas, sempre ocupadas por blocos escuros de palavras, sem parágrafos ou travessões que lhe deem espaço para respiração”. O impacto do romance foi tão intenso e durou tanto tempo que, mais de uma década depois do primeiro contato com a obra, Caetano a homenageou na letra do samba-canção “Sampa”, com a passagem “PanAmérica de áfricas utópicas”. Até hoje, entretanto, poucos compreendem ou sabem que o artista baiano se referia ao título do romance considerado capital para os tropicalistas. Caetano acrescenta ainda: “José Agrippino de Paula vivenciou os conteúdos da vida do final do século passado com tanta frieza e tanta paixão que talvez não haja no mundo nenhuma obra literária contemporânea de seu ‘PanAmérica’ que lhe possa fazer face. O livro soa (já soava em 1967) como se fosse a Ilíada na voz de Max Cavalera”. 

Apesar de muito citado por escritores (sobretudo os da nova geração), o romance continua a ser pouco lido, pouco digerido, pouco compreendido. Isso pode ser explicado, em parte, pelo desafio que a narrativa impõe ao leitor para se acostumar com o estilo do autor ou mesmo aprender a lê-la de modo funcional. Sem obedecer à lógica da clareza narrativa e a estrutura linear ou qualquer outra regra de escrita comum, Agrippino de Paula constrói uma irreverente e insana aventura sobre a filmagem de episódios da Bíblia, que acaba por reunir nomes de diferentes épocas e gerações. Estão lá como personagens convidados famosos do cinema, do esporte e da política. Como Burt Lancaster, Cassius Clay, Joe Di Maggio, Marlon Brando, Harpo Marx, John Kennedy, Carlo Ponti, Charles de Gaulle, Che Guevara, Marilyn Monroe, Cary Grant, John Wayne, Cecil B. de Mille, Andy Warhol e muitos outros ícones da cultura de massa. Eles seriam descritos depois como gigantes, inverossímeis, grotescos, feéricos como “Gargântua e Pantagruel”, de François Rabelais (1494-1553), lançado em 1532. Todos atuam em situações cujas descrições se dão em primeira pessoa. As sequências não têm qualquer lógica e dentro de contexto pitoresco ou cinematográfico. E é com esses tipos excêntricos que o narrador busca interagir. 

“PanAmérica” foi o segundo romance de Agrippino de Paula. Dois anos antes, em 1965, ele lançou, pela Civilização Brasileira, “Lugar Público”, recebido com entusiasmo por Carlos Heitor Cony, então badalado romancista e cronista político e que assinou a orelha do volume. Até então desconhecido como escritor, o jovem autor de 28 anos causou grande perplexidade na cena literária brasileira – ajudado, em parte, pela fama da editora de relevar novos talentos, o que despertou interesse da crítica. Cony observa que a escrita que marca a estreia de Agrippino de Paula “possui afinidades com a de escritores franceses da década de 1950, criadores do chamado nouveau Roman, pelo objetivismo da narração e o antipsicologismo na construção dos personagens”. De estilo fragmentário, prossegue ele, “’Lugar Público’ aborda o cotidiano caótico de uma grande cidade na qual personagens com nomes de figuras históricas como Napoleão, César ou Pio XII vivem de forma errante”. Assim, o segundo livro pode ser visto como uma radicalização de “Lugar Público”, ao explorar de modo intenso e subversivo o que Schenberg chamou de “mitologia contemporânea” 

Os dois livros não trouxeram fortuna a Agrippino de Paula, mas permitiram que ele abrisse portas e tivesse um papel relevante na intensa produção cultural brasileira da segunda metade da década de 1960. Nesse período, que se estendeu aos anos de 1970, ele montou quatro peças marcantes: “United Nations”, “Rito de Amor Selvagem”, “Planeta dos Mutantes” e “Tarzan III Mundo”. Também dirigiu vários filmes, como o longa-metragem “Hitler III Mundo”, marco do cinema experimental brasileiro. Mas foi “PanAmérica” que fez ele se transformar em sinônimo da contracultura. O livro e suas ideias o levaram para o centro do tropicalismo e ele passou a fazer parte do círculo de Caetano, Gilberto Gil e Hélio Oiticica, que o consideravam um guru. E ganhou projeção nacional. Desde os primeiros momentos nas livrarias, o livro atraiu admiradores dedicados, que passaram a cultuá-lo como um clássico da literatura brasileira daquela época. Transformou-se em tema de estudos de pós-graduação, embora permanecesse por três décadas fora de catálogo – somente em 2001, voltou pela pequena editora Papagaio, de São Paulo, que incluiu a valiosa apresentação de Caetano. Um aval e tanto para quem pensa em se aventurar nesse mundo absurdo e hipnotizante de um grande embora pouco lembrado escritor brasileiro.


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