Em uma época quando as ideologias políticas que polarizariam o mundo no século XX não existiam e as monarquias católicas literalmente reinavam na Europa, o cristianismo estabelecia regras para a vida das pessoas. Enquanto reis buscavam o controle da vida eclesiástica, porém, o Vaticano começava a perder parte de sua força política, com algumas cisões internas. Na verdade, alguns governantes queriam fazer da Igreja um serviço público subordinado a eles e integrante da administração do Estado. Nasceu o racionalismo de René Descartes (1596-1650) que, levado ao extremo, chegava ao ceticismo religioso. Ao mesmo tempo, surgiram os “libertinos”, que adotavam uma posição de indiferença em relação à religião. Chamados de epicuristas, eles pregavam: “comamos e bebamos que amanhã morreremos”. Enquanto Baruch Espinoza (1632-1677) faz uma crítica radical contra a Bíblia e o “Deísmo” da Inglaterra se propagou para o continente. O ódio a qualquer religião e principalmente ao cristianismo foi também uma obsessão pensadores importantes como Voltaire (1694-1778).
A Revolução Francesa (1789-1799), nos seus momentos mais radicais, fez o possível para eliminar qualquer religião e extirpar resquícios de vida cristã na sociedade. Tanto que dois papas foram aprisionados na França, os templos e bens da Igreja confiscados – depois, caíram em mãos de particulares. Sob o Terror, a perseguição anti-católica atingiu o seu ponto máximo na última década do século XVIII. Milhares de católicos subiram ao patíbulo pelo simples fato de professarem a religião. Dentre eles, o escritor francês Jacques Cazotte (1719-1792), depois que descobriram algumas cartas suas consideradas contrarevolucionárias, em agosto de 1792. Ele seria guilhotinado no mês seguinte. Embora fosse cristão, Cazotte deixou uma obra de ficção importante, com viés religioso, que incluiu o inventivo romance “O Diabo Apaixonado”, publicado pela primeira vez em 1772. Era uma novela fantástica em que o herói superava o diabo, quando a demonização do mal era algo inquestionável e que ajudava a Igreja a manter sua dominação pelo medo – a visão do fogo do inferno, em que os pecadores queimariam de dor e tormento por toda a eternidade, reinava absoluta.
Cazotte, de certo modo, subverte essa noção. O protagonista do livro é o oficial Alvare, um rapaz afoito e imprudente que não levou muito a sério quando, em conversa com amigos sobre a cabala, topou o desafio de evocar o diabo nas ruínas de Portici, perto de Nápoles. Ele estava movido pela curiosidade juvenil e pelo desejo de realizar a experiência de falar com os mortos. Um dos amigos lhe diz, preocupado: “Rapaz, pensei que fosse mais prudente; começo a temer por você e por mim. Então, você se exporia a invocar espíritos sem nenhuma preocupação”. Fazia tempo, insistia que o ajudasse a contatar o além o amigo Soberano, mais velho que ele e de origem flamenga, um homem sinistro que gosta de fumar cachimbo e é “profundo conhecedor das ciências ocultas”. A um dos interlocutores, Alvare pergunta o que lhe poderia acontecer se mexesse com o oculto e o sobrenatural. Soberano dizem tom de alerta: “Não afirmo que tenha de lhe acontecer algo de ruim; se eles tiverem poder sobre nós, será por fraqueza e pusilanimidade de nossa parte: no fundo, nascemos para mandar neles”. E pergunta ao jovem o que ele faria se visse o diabo. A resposta veio em tom de deboche: “Eu puxaria as orelhas do Grande Demo do Inferno”.
O que Alvare não podia imaginar era que, de fato, o diabo tinha muitas facetas, algumas delas, sedutoras demais. Poderia, por exemplo, entrar na sua vida na forma de uma linda mulher. E assim acontece. Se não bastasse, para piorar, a figura sedutora e com poderes mágicos se apaixonou por ele e decidiu que não o deixaria em paz até o tivesse em seus braços. A partir desse momento, então, tudo que acontece na história não se sabe se são fatos do acaso ou armadilhas da diabólica, porém dócil, criatura. Nesse aspecto, é preciso dar ênfase à perenidade do texto de Cazotte, mais atual que nunca em um mundo extremamente competitivo e individualista, do consumismo desenfreado e de crise de valores morais e éticos. Soberano afirma ao soberbo oficial: “Bravo! Se está tão seguro de si, pode arriscar-se, e prometo-lhe ajuda. Sexta-feira que vem ofereço-lhe um jantar com dois dos nossos e iniciaremos a aventura”. Tudo, no entanto, dá-se diferente do esperado, com o Diabo travestido de uma aparência nada assustadora e que atende pelo nome de Biondetta: “Eu recuava quanto podia para sair daquela situação embaraçosa; mas ela abraçava meus joelhos e me seguia arrastando-se. Fiquei, afinal, encurralado contra a parede”.
Depois de desafiar o desconhecido e desdenhar do mesmo, o rapaz tem sua vida virada pelo avesso a partir da manhã seguinte. Antes, pensa que se livrará facilmente da agora indesejada companhia. “Amanheceu, Biondetta, todas as obrigações foram cumpridas, pode sair do meu quarto sem o medo do ridículo. Agora estou – responde-me – acima desse temor; mas os seus interesses e os meus me causam outro bem mais sério: não permitem que nos separemos. Pode me explicar?” Ela responde: “É o que vou fazer, Alvare! Sua juventude, sua imprudência lhe fecham os olhos quanto aos perigos que acumulamos ao nosso redor. Assim que o vi sob a abóboda e constatei sua atitude heróica diante do aspecto da mais hedionda aparição, decidi qual seria a minha escolha. Se, disse a mim mesma, para chegar à felicidade, devo unir-me a um mortal, vamos adotar um corpo, chegou a hora. Eis o herói digno de mim. Mesmo que fiquem indignados os desprezíveis rivais dos quais abro mão; mesmo que me exponha a seu ressentimento e vingança, pouco importa. Amada por Alvare, junta com Alvare, ele e a natureza nos serão submissos. O senhor viu a continuação. Eis as conseqüências.”
Embora ficasse claro o sentido de uma obra meramente demonstrativa sobre um inconsequente e arrogante jovem que pensa que tudo pode, e ter um caráter educativo, o romance de Cazotte provocou escândalo por causa do modo como tratou o lado obscuro das religiões e sua conotação claramente (homos) sexual. Ou seja, “O Diabo Apaixonado” é, também, uma das primeiras obras a tratar desse aspecto na literatura do gênero tradicional ou clássico. O caráter da transsexualidade ou do travestismo é evidente – do macho no corpo da fêmea. O narrador tem diante de si uma mulher deslumbrante, apaixonada e dedicada, mas que ele sabe se tratar de um demônio cuja forma original e monstruosa é masculina. Aos poucos, porém, ele começa a sucumbir à paixão por Biondetta. Principalmente depois que ela é gravemente ferida a punhaladas e agoniza por semanas, por sua causa. “Meu estado era lastimável. Qualquer outra ideia desaparece. Só vejo uma mulher adorada, vítima de uma ridícula premeditação, sacrificada por minha vã e extravagante confiança, e injuriada por mim, até então, com os mais cruéis insultos”.
A mitologia do diabo, então, havia se intensificado com o advento da modernidade, e variava entre a procura de seres humanos para pactuar e a invasão de corpos. No romance, há uma inversão e o autor se preocupa em mostrar como o diabo passou de tentador servil a invasor de corpos. Muitas vezes, no combate realizado pela Igreja contra a heresia, com grande atenção para a relação entre bruxas e o diabo, os clérigos difundiam práticas e crenças que desejavam extinguir com ênfase no aspecto demoníaco. Especialistas acreditam que a imprensa ajudou ao permitir uma difusão mais rápida e detalhada pela publicação de imagens e opiniões. Isso fez com que o diabo conquistasse o auge de seu poder na imaginação das pessoas no mundo ocidental. Além disso, tanto a Reforma Protestante quanto a Contrarreforma Católica utilizaram-se de sua figura de forma crescente para justificar seus esforços de salvar os ameríndios.
Tamanha preocupação com o tema dividiu opiniões sobre o texto de Cazotte, entendida como obra subversiva, herética e, claro, demoníaca por uns e, por outros, como exploração do caráter demoníaco da beleza e da mulher, consequentemente. A primeira visão parece a mais correta e se torna irrelevante diante da abordagem homossexual que ele dá à trama, o que torna a crítica à capacidade de sedução da mulher falsa. Não é a mulher diabólica, mas o diabo disfarçado dela. Seu romance traz, acima de tudo, inquietações de seu tempo. De qualquer modo, tecnicamente, é um grande livro, graças a seu texto dinâmico, narrado em primeira pessoa, mas predominantemente estruturado com diálogos diretos entre os personagens. Difícil acreditar que tenha sido escrito há mais de 200 anos, tamanha a sua fluência e estrutura moderna, cinematográfica até, a vivacidade das descrições feitas e a dinâmica da trama, em que suspense e ação se sucedem o tempo todo. Como a descrição que faz do carnaval de Veneza. Por confundir tanto os leitores com sua abordagem rica em simbologias, vale a pena ser lido.
Em tempo: a José Olympio Editora está lançando uma nova tradução de “O Diabo Apaixonado”, que inclui ainda o conto “Aventura do Peregrino”. Na trama, o encontro entre um monarca e um peregrino, que se revela um conhecedor da essência humana.
Deixe um comentário