O malandro Reeves Minot vivia em Hamburgo e, por muito tempo, sobreviveu da venda de objetos roubados. Recentemente, envolvia-se cada vez mais com o submundo do jogo ilegal. Seu papel era dos mais perigosos: proteger o negócio contra a chegada dos mafiosos italianos, que pretendiam assumir seu comando. Por isso, estava à procura de alguém que o ajudasse a cometer “um ou dois assassinatos simples” e talvez um roubo, de modo que tudo fosse feito em segurança, sem deixar vestígios. Se conseguisse, talvez apavorasse os intrusos, a ponto de afastá-los. A medida também atrairia a atenção da polícia para a ameaça da Máfia se instalar no país e os homens da lei tomariam as medidas necessárias para impedir isso. Ele, então, pediu ajuda a Tom Ripley, que, por ser forasteiro, seria mais fácil de despistar. Mas este o alertou: “Esse negócio de crime perfeito não existe. É só uma brincadeira de salão ficar tentando bolar um crime perfeito. É claro que você pode argumentar que tem um monte de assassinatos que nunca foram resolvidos. Isso são outros quinhentos”.
Não seria o primeiro trabalho de Ripley para Reeves de modo ilegal. A amizade dos dois era notória. Seis meses antes, o amigo americano escapara por um triz de ser preso depois de ter esmagado o crânio de um pintor para tentar ocultar pistas, depois que a vítima cometeu suicídio. Ele é agora um rico homem de trinta e poucos anos que vive em Villeperce, França, com sua abastada esposa Heloise. Passa seus dias confortavelmente em sua casa, na propriedade de Belle Ombre. Ele, então, resiste à oferta de 96 mil dólares de Minot para cometer os crimes, mas acontece uma reviravolta em seguida, quando se lembra de que, no mês anterior, tinha ocorrido uma festa em Fontainebleau, cujo anfitrião, Jonathan Trevanny, um construtor de molduras e seu amigo, pensava estar à beira da morte por causa de uma grave doença no sangue – leucemia mieloide. Trevanny, no entanto, não o recebeu bem. Pelo contrário, insultou-o. Como vingança, Ripley sugere a Minot que o convença a cometer os dois assassinatos.
O moldurista, por temer que sua morte deixe esposa e filho desamparados financeiramente, aceita inicialmente a oferta de Minot de fazer uma visita a um especialista alemão de Hamburgo em busca de cura de sua enfermidade. Ao chegar, porém, descobre que é atraído para o plano de Ripley e acaba convencido a matar por dinheiro. Como parte da conspiração, o americano espalha o boato de que Trevanny tem apenas alguns meses de vida. E sugere que Minot fabrique evidências de que a leucemia de seu desafeto piorou. Enquanto isso, Simone, esposa do futuro matador, descobre um recibo de banco suíço no nome do marido com uma grande quantia e começa a suspeitar que ele esteja envolvido em algo desonesto. E pede a Trevanny para lhe dizer como, exatamente, tem conseguido ganhar tanto dinheiro. Ele é incapaz de explicar-lhe e pede ajuda a Ripley para inventar uma história verossímil. As coisas, entretanto, começam a fugir do controle. Ripley passa a temer a vingança da máfia, depois que recebe alguns telefonemas ameaçadores.
Esse é o enredo de “O Amigo Americano”, terceiro romance policial da série de cinco com o ardiloso Tom Ripley, vilão que nasceu na década de 1950 da imaginação singular da escritora americana Patricia Highsmith (1921-1995). Ela se tornou famosa pela elaboração do caráter psicológico de seus criminosos e tem em Ripley seu principal personagem. Seu perfil nada politicamente correto e suas histórias sem final moralista apontaram um novo caminho para o gênero, similar ao que já vinha experimentando outro mestre do gênero, Jim Thompson (1906-1977), autor de “O Assassino em Mim”, cujo protagonista era um xerife psicopata dissimulado e extremamente violento. A criatura de Highsmith surpreendeu desde a primeira aventura por não trazer em si a clareza do antagonismo entre o vilão e o mocinho, quase uma regra da censura velada americana a qualquer obra do gênero policial.
Amoral ou imoral, Ripley não precisava de um bom motivo para matar alguém, só de certa disposição ou motivação mental. Como toda mente perturbada e voltada para o mal, parecia buscar prazer quando tinha a morte em suas mãos, diante dos seus olhos. Neste e nos demais livros de Ripley, a escritora contradiz a regra, em obras famosas, de que deve haver a dualidade explícita e imutável do bem e do mal, sempre em lados opostos, claramente definidos para o leitor, de modo que ele possa torcer pelo mocinho. Ao fazer seu vilão sedutor, ela misturou e confundiu tudo. Highsmith descreveu seu psicopata como um bandido dândi, o sujeito que dizia detestar matar, mas o fazia sem remorso, com frieza, na verdade. A ponto dessa condição, para ele, tornar-se rotineira.
Foi assim desde que, com o nome de Thomas ‘Tom’ Ripley, apareceu pela primeira vez em “O Talentoso Senhor Ripley”, publicado em 1955 e que também ganhou o título “O Sol por Testemunha” no Brasil, por causa do nome do filme de René Clément (1913-1996), com Alain Dellon perfeito no papel do vilão – a autora lançaria mais quatro livros, até 1990. Ripley surgiu como um jovem vigarista disposto a ficar rico sem muito esforço. Órfão aos cinco anos de idade, foi criado em Boston pela tia Dottie, uma mulher mesquinha e fria que zombava do menino, chamava-o de “maricas” – a sexualidade dele, aliás, é alvo de especulações há décadas. Adolescente, Ripley tentou, sem sucesso, fugir para Nova York. Só conseguiu após completar 20 anos. Insinuante e bom de conversa, sua vida dá um salto quando é pago pelo magnata Herbert Greenleaf para ir à Itália convencer seu filho Dickie a retornar para Nova York e se juntar aos negócios da família. O jovem faz amizade com o rapaz e se encanta pelo seu estilo de vida de milionário e bon vivant. Logo também se torna obcecado pelo próprio Greenleaf e o mata após ser rejeitado. Ao fazer isso, entretanto, tinha um plano: assumir sua identidade, forjando sua assinatura para sacar a mesada que o pai do rapaz lhe manda todos os meses.
Em todas as suas tramas, Ripley comete homicídio dez vezes e, indiretamente, provoca mais quatro mortes adicionais. A mente atormentada de um homicida levou sua criadora a escrever histórias irresistíveis, onde tudo é diferente do padrão. Ela desmoraliza chavões como o crime premeditado, a mulher sedutora e de beleza fatal, o detetive esperto e incansável etc. Para Patricia Highsmith, uma história sobre assassinos não deveria envolver questões morais e pode ser justificada por desenrolar dos fatos ou pelas circunstâncias da vida, de modo que a culpa deixa de existir. Ao mesmo tempo, dizem seus críticos, o cruel e o trivial se confundem, pois o assassino se transforma em uma vítima do acaso, e o crime, a última e desesperada tentativa para se salvar uma situação. Só que, na maioria das vezes, ela faz uma brincadeira com estes conceitos, de modo cínico e com certo humor ou sarcasmo. Tanto que, em cada aventura ou desventura, Ripley chega a correr o risco de ser preso ou morto, mas, no final, sempre escapa perigo. Por isso, ele é “suave, agradável e totalmente amoral”, além de vigarista e assassino em série, que sempre foge da justiça.
Há décadas, Patricia Highsmith entusiasma seus leitores com a sedução e a maldade imprevisível de Ripley e outros personagens parecidos, como o protagonista de “Pacto Sinistro”. Entre eles, cineastas importantes, que adaptaram com sucessos alguns de seus livros. Além de René Clément, teve a sorte de ver essas versões dirigidas por grandes diretores como Alfred Hitchcock (“Pacto Sinistro”) e Wim Wenders (“O Amigo Americano”). “Arquiteta de atos criminosos gratuitos e impunes, que ameaçam a lógica ordenada do mundo”, Highsmith é, segundo o escritor inglês Graham Greene (1904-1991), “a poeta da apreensão, mais do que do medo. Porque com o medo a gente se acostuma, mas apreensão significa constante tensão, alfinetadas intermitentes de que não se pode escapar”. No caso de um seus mais cultuados livros, “O Amigo Americano”, seu estilo aparece acabado, perfeito, irresistível.
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