O simples ato de fazer um café e esperar a chaleira ferver para jogar a água sobre o pó no coador pode durar uma dezena de minutos ou um pouco mais. Tempo suficiente de espera para que uma dona de casa americana se perca em pensamentos sobre sua vida, no começo da década de 1970. O que viveu, que rumo sua existência tomou. Temas assim lhe vêm à cabeça. Mãe de dois filhos, aos 45 anos de idade, ela está entediada, prisioneira de um círculo invisível, porém instransponível, de regras e valores imposto ao sexo feminino no decorrer dos séculos e das décadas. “A mulher estava parada no degrau da porta dos fundos de sua casa, os braços cruzados esperando que a água na chaleira fervesse”. Ela cresceu e viveu ouvindo coisas do tipo “O crescimento é um processo quase sempre doloroso”, “Meu primeiro filho, sabe… Mas eu estava apaixonada!”, “O casamento é um compromisso” e “Não sou mais tão jovem”.
Mais adiante, enquanto segurava a panela, chega a uma conclusão. “Nós somos o que aprendemos. Frequentemente leva muito tempo e é muito doloroso. Infelizmente também não havia dúvida de que uma porção de tempo, uma porção de sofrimento se passava para que se aprendesse muito pouco…” A descrição que a escritora inglesa e Nobel de Literatura de 2007 Doris Lessing (1919-2013) faz em “O Verão Antes da Queda” dessa anônima mulher de meia idade é cinematográfica e hipnotizante. E, mais de quarenta anos depois de sua publicação, ainda poderosa. É a deixa para ela apresentar, em seguida, Kate Brown, protagonista do romance, assim descrita: “Uma mulher sai por uma porta lateral dando para um gramado que precisava ser aparado, atraentemente salpicado de margaridas, e foi em direção a uma árvore do seu jardim”. Depois de dizer seu nome, a narradora acrescenta: “Ela levava a bandeja com cuidado, e estava pensando na lavagem da louça enquanto continuava com seu inventário pessoal, a sua contabilidade…”
Ela desejava que qualquer que fosse o estágio da vida em que estivesse naquele momento, “pudesse ser ultrapassado depressa, pois lhe estava parecendo interminável”. Pensou que se a vida tinha de ser encarada em termos de grandes momentos ou de êxtases, então nada lhe tinha acontecido havia muito tempo. “E ela não podia esperar por nada além de um afastamento gradual da totalidade das atividades domésticas, enquanto envelhecia.” Seu perfil não era muito diferente da vizinha. Pelo menos até aquele momento, pois ela estava próxima de passar por experiências importantes e transformadoras. “Às vezes, quando se tem sorte, um processo, ou um estágio, de fato se acelera. E, para Kate, aquele verão iria fazer retornar uma dessas fases reduzidas, intensificadas e aceleradas. Que experiência ela iria viver? Nada de muito mais do que, simplesmente, o seu envelhecimento: aquela herança e repetição da ação de crescimento”.
Imagina ela nas primeiras páginas, alguns clichês que ouviu por toda a vida: “Acontece com todo mundo, é claro…”, “Ah, puxa, o tempo voa!… Antes que a gente perceba, a vida já passou…” e “A maturidade é tudo”. E assim por diante. Mas, no caso de Kate, não seria um processo que duraria uma década ou duas, quase despercebido quando se desenvolvia, exceto nas tentativas desesperadas para conter o turbilhão de banalidades, como “pintar o cabelo, manter o peso baixo, seguir a moda com cuidado de forma a ser elegante, mas não um gato passando por lebre”. Tudo, enfim, que se esperava de uma mulher. Charmosa, elegante e inteligente, o inesperado vem romper sua rotina quando o marido médico faz uma longa viagem, durante toda uma temporada de verão. Como os filhos já crescidos e dispersos do casal não moram mais em casa, ela está sozinha como não acontecia havia décadas.
Por outro lado, profissionalmente, porém, Kate passava por um bom momento. De classe média alta e sem preocupações financeiras, enquanto novas perspectivas se abrem para ela em seu trabalho, acaba por se envolver rapidamente com um homem bem mais moço, por quem se apaixona como uma adolescente. A nova relação faz com que imagine um recomeço e a tente a largar tudo em troca de um futuro de realizações materiais e sentimentais. Logo, porém, conclui que não será fácil. Ela terá de confrontar seu passado e todas as barreiras que uma mulher de sua idade tem de ultrapassar se quiser alterar seu destino. Como consequência, tem uma terrível crise de identidade, em uma abordagem ainda hoje, mais de três décadas depois, tão presente e viva. Ao mesmo tempo em que experimenta novas sensações que pareciam adormecidas para sempre em sua mente e nas lembranças, ela questiona seu papel de esposa, mãe e profissional.
Kate conclui que vivera sempre a desempenhar personagens, sem saber de fato quem ela realmente era. Essa busca tortuosa e cheia de dilemas a conduz a novas possiblidades e a ensina a ver a si mesma por novas perspectivas. Seus dilemas são o debate que Lessing propõe em seu romance, escrito e publicado no auge do feminismo, quando se buscava um equilíbrio e certo amadurecimento nas ideias propostas pelas líderes do movimento. Ela quer se tornar independente, mas nota que ainda está aprisionada “entre palavras e pessoas criadas para usarem a serem usadas por palavras”. É uma história construída para fazer parte da discussão sobre a opressão às mulheres, construída por uma mulher ativa, dividida entra a militância no Partido Comunista e a própria luta pela emancipação feminina – tema que ela também tratou em “O Carnê Dourado”, de 1962. Seu livro, porém, superou as circunstâncias do momento e se cristalizou como um grande romance, à altura da honraria maior que recebeu – bastante criticada, por sinal.
Considerado um texto feminista, “O Verão Antes da Queda” foi eleito pelo suplemento literário do jornal “The New York Times” a melhor obra da autora. É um romance extremamente bem escrito, complexo em suas entrelinhas, carregado de sentimentos suficientes para darem vida real aos personagens. Seus perfis de cada um são momentos de rara beleza da construção literária, que causa comoção, pela capacidade de expor a alma da protagonista, sua solidão, seu desespero diante dos empecilhos da vida por ser mulher. Difícil o leitor não se envolver, encantar-se por eles, torcer, querer dialogar. Há um desespero quase explícito, uma sensação que todos sentem em determinados momentos da vida, principalmente com a aproximação da meia idade, no sentido de reorganizar sua existência, tentar, de algum modo, corrigir a rota e entender que é preciso arriscar para fazer com que tudo valha a pena, pelo menos a partir daquele ponto.
Doris Lessing parece profundamente envolvida em sua história, uma vez que a personagem principal tinha à época uma idade próxima da sua. Por meio de Kate, ela faz um instigante check-up da existência feminina, sua relação com a maternidade e as limitações que a sociedade lhe impõe. Ainda hoje, mesmo que certos avanços e com alguma sutileza de hipocrisia, ainda é alto o preço que as mulheres têm de pagar por confrontar valores morais e religiosos.
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