[78 de 100] O amor obsessivo pelo homem, segundo Jean Genet

genetO parisiense Jean Genet (1910-1986) teve uma das vidas mais controversas no mundo das letras e das artes cênicas no século XX. Uma existência marcada pela coragem em se expor ao tratar de temas polêmicos, como a sua confessada homossexualidade. Escritor, poeta e dramaturgo, filho de uma prostituta e pai desconhecido, o que é apontado como uma influência marcante em sua conduta e sua obra libertária. Cresceu como filho adotado de um casal da região rural de Morvan, na Borgonha, mas não conseguiu se adaptar às regras de uma educação convencional francesa e caiu na delinquência. Genet passou a juventude em reformatórios e prisões, época em que afirmou sua orientação sexual. Aos 18 anos, entrou para a temida Legião Estrangeira, famosa pelo rigor em preparar soldados e colocar na linha tipos rebeldes como ele a partir de métodos terríveis de disciplina.

Não funcionou, claro. Em pouco tempo, foi oficialmente expulso por desonra, após ter sido flagrado fazendo sexo com um recruta. Passou a se dedicar à escrita, mas sem se afastar de confusões. Ao mesmo tempo em que esboçava seus primeiros escritos e concluia peças que se tornariam importantes, como “O Balcão”, “Os Negros” e “Os Biombos”, estabeleceu para si a má reputação de alguém que só atraía escândalos e se envolvia em roubos e brigas. Mesmo assim, ao longo da vida, Genet se tornou amigo de importantes personalidades de seu tempo:, como os filósofos Jacques Derrida (1930-2004) e Michel Foucault (1926-1984), os escritores Juan Goytisolo (1931) e Alberto Moravia (1907-1990), os compositores Igor Stravinski (1882-1971) e Pierre Boulez (1925), o diretor de teatro Roger Blin (1907-1984), os pintores Leonor Fini (1907-1986) e Christian Bérard (1902-1949). Nomes cujo convívio reforçou a certeza de sua importância como autor.

Sua vida sexual, enquanto isso, era intensa. Sem meias palavras, seduziu uma leva impressionante de namorados e amantes, que trazia consigo ao circular pelo baixo mundo parisiense. Nada impediu que seu talento fosse logo reconhecido e ele conquistasse a nata da intelectualidade francesa. Entre os seus primeiros trabalhos estavam dois romances de títulos um tanto quanto pudicos, mas carregados de ironia: “Nossa Senhora das Flores” e “O Milagre da Rosa”, que chamaram de imediato a atenção de Jean Cocteau (1889-1963). Mas foi graças ao filósofo e escritor Jean Paul Sartre (1905-1980) que “Nossa Senhora das Flores” ficou famoso. Para ele, trata-se de uma das três grandes obras “medievais” do século XX, ao lado de Ulisses, de James Joyce (1882-1941), e de “Duas Existências”, do dramaturgo Jean Girandoux (1882-1944).

Embora pouco conhecido, seu romance de estreia “Nossa Senhora das Flores” é um livro grandioso e que merece reverência acima da média. Quem diz isso é boa parte da crítica, que o considera sua obra-prima. O parágrafo de abertura sintetiza não só seu conteúdo como a qualidade da escrita de Genet: “Weidmann surgiu para vocês numa edição das cinco horas, a cabeça enfaixada de fitas brancas, uma religiosa e também um aviador ferido, caído nos campos de centeio, um dia de setembro semelhante àquele que revelou ao mundo o nome de Nossa Senhora das Flores. O belo rosto, multiplicado pelas prensas, tombou sobre Paris e sobre a França, no mais recôndito das aldeias perdidas, nos castelos e nos barracos, mostrando aos entristecidos burgueses que sua vida cotidiana é roçada por assassinos encantadores, levados sorrateiramente até o sono que deverão atravessar, por alguma escada de escritório que, conivente com eles, não rangeu. Sob sua imagem, seus crimes resplandeciam de aurora: morto 1, morto 2, morto 3, até 6, narrando sua glória secreta e preparando sua glória futura”.

Genet reconta histórias peculiares de assassinatos. “E é em homenagem a esses crimes que escrevo meu livro”. Publicado pela primeira vez no ano de 1943, em edição clandestina, quando ele tinha 33 anos bem vividos, o texto foi descrito como perturbador, inteiramente criado na solidão de uma cela de prisão, e constituiu “uma autêntica epopeia do mundo marginal”. Mas Genet não trata desse universo de modo glamouroso. Ao contrário, enfatiza os seus horrores e, assim, consegue lhe conferir uma existência nova, atemporal, poética, sacralizada, como diz a apresentação de uma de suas edições em português. Os méritos são muitos, apontados por especialistas: por seu lirismo, por seus personagens apaixonantes, santos e mártires à sua maneira particular, por seu vocabulário suntuoso em que as palavras valem como elementos-chave que sustentam o esplendor barroco do edifício ficcional.

O romance foi escrito literalmente a duras penas e muita perseverança. Genet contou depois que as autoridades penitenciárias francesas pregavam como forma de ressocialização o preceito de que “o trabalho é a liberdade”. E distribuíam aos prisioneiros papel pardo para que eles confeccionassem sacolas de compras. A partir da apropriação de pequenos pedaços dessa matéria prima que ele escreveu, a lápis, “Nossa Senhora das Flores”. Não foi fácil, porém. E tudo só não foi destruído para sempre por teimosia do autor. Um dia, enquanto os presos caminhavam pelo pátio, um guarda entrou na cela de Genet para vistoria e viu o manuscrito. Confiscou-o e o queimou em seguida. Genet, no entanto, começou tudo de novo, mesmo sabendo que havia pouca possibilidade de manter seu trabalho preservado, até ser solto. E considerava que tinha poucas chances publicá-lo, por causa do seu conteúdo subversivo. E caso, contra todas as probabilidades, ele vencesse as dificuldades, certamente o livro seria banido, confiscado e censurado. Mesmo assim, nada mais interessava a ele a não ser aquelas folhas marrom que um fósforo poderia transformar em cinzas.

Não deu outra. O processo de distribuição de suas obras é marcado, entretanto, por proibições e vetos constantes. Em 1960, por exemplo, a publicação de Nossa Senhora é proibida na Alemanha e liberada apenas em 1962. Em 1964 o departamento de Estado dos EUA se recusa a dar um visto a Genet por motivos de desvio sexual. Estes, entre outros tantos eventos ligados ao autor e a sua obra incitaram ainda mais a procura pelos textos de Genet e reafirmaram seu papel de escritor maldito e transgressor. Edmund White, pesquisador e autor de extensa biografia sobre Genet, observa que Jean Cocteau, na primeira leitura de Nossa Senhora das Flores ficou chocado e desconcertado. Precisou de um certo tempo para reconhecer a importância da obra e apresentá-la a um editor amigo, que concordou com a publicação. E ninguém menos que Michel Foucault relata que ficou muito impressionado (no sentido positivo da palavra) quando teve contato com a obra de Genet, ainda jovem.

Os principais personagens de sua obra toda são homossexuais. Produto da biografia do escritor maldito e de seu sonho, esse romance conduz o leitor a regiões proibidas, fazendo da transgressão das leis jurídicas e morais um mundo hipócrita um valor exemplar, absoluto. Para Sarte, o excepcional valor da obra repousa em sua ambiguidade. “A princípio, parece ter apenas um tema, a fatalidade: os personagens são os joguetes do destino. Porém logo descobrimos que essa impiedosa Providência não é senão a contrapartida de uma soberana – na verdade, divina – liberdade, a liberdade do autor. Nossa senhora das flores é o mais pessimista dos livros. Com diabólica diligência, conduz suas criaturas à decadência e à morte. Mas, mesmo assim, na sua estranha linguagem, apresenta a decadência como um triunfo. Os marginais e os desgraçados que apresenta parecem ser heróis e fazer parte dos eleitos e, o que é mais surpreendente ainda, o próprio livro é um ato do mais deslavado otimismo. Sartre deu um caráter existencialista ao livro.

Em sua longa apresentação, Sartre destacou alguns trechos da obra de Genet que mais o tocaram: “A nobreza é sedutora. O mais igualitário dos homens, embora não admita, experimenta esta sedução e a ela se submete. Diante dela só duas atitudes são possíveis: a humildade ou a arrogância, pois tanto uma quanto a outra são o reconhecimento explícito do seu poder. (…) O que vem a seguir é mentira e ninguém é obrigado a aceitar como verdade evangélica. A verdade não é meu forte”. Sartre destacou também frases de efeitos como esta: “Porém é preciso mentir para ser verdadeiro”. E mesmo ir mais longe. “De que verdade quero falar? Se é bem verdade que sou um prisioneiro que representa (e se faz representar) cenas da vida interior, vocês não devem exigir outra coisa senão uma representação. Os três estão para sair da água-furtada. Estão prontos. Gorgui segura a chave. Um cigarro na boca de cada um. Divina risca um fósforo de cozinha (ela cada vez mais toca fogo na própria fogueira), acende seu cigarro, o de Nossa Senhora e estende a chama até Gorgui. – Não – diz ele –, não três ao mesmo tempo, dá azar.”


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