[80 de100] As inviabilidades do amor e da possessão, segundo Ernesto Sábato

tunelTamanho nunca foi documento quando se trata de conteúdo de livros. Tanto de ficção quanto de não-ficção. O breve “O Túnel”, primeiro romance do escritor argentino Ernesto Sábato (1912-2011) é um exemplo acabado dessa regra. Um grande livro em um número não elevado de páginas. Não por acaso, arrancou comentários elogiosos de autores como Thomas Mann (1875-1955), que o chamou de obra “impressionante”. Ou de Albert Camus (1913-1960), que afirmou: “Admiro sua dureza e sua intensidade”. Publicado pela primeira vez em 1948, sua narrativa foi escrita ”a partir de uma subjetividade total”, segundo o autor. Em 1953, no livro “Heterodoxia”, Sábato comentou: “Enquanto eu escrevia esse romance […], muitas vezes me detinha, perplexo, para avaliar o que estava saindo, tão diferente do que havia previsto. E, sobretudo, intrigava-me a importância crescente que iam assumindo o ciúme e o problema da posse física”. 

Sua ideia inicial era escrever um conto, cujo enredo seria o relato de um pintor que enlouquecia ao não conseguir se comunicar com o mundo e as pessoas; “Nem mesmo com a mulher que parecia tê-lo entendido por intermédio de sua pintura”, escreveu o autor. Segundo ele, a trama cresceu e virou romance, onde “o desespero metafísico se transforma em ciúme, e a história, que parecia destinada a ilustrar um problema metafísico, transforma-se em romance de paixão e crime”. Na versão final, o livro explora de modo intenso e marcadamente existencialista – forte corrente literária da década de 1940 – a solitária visão de mundo do fictício artista plástico Juan Pablo Castel, que se tornaria com o passar das décadas um dos mais marcantes personagens da literatura argentina. Ele é o típico homem contemporâneo em crise e deslocado no mundo, que se esforça para se ocultar e se afastar da convivência das pessoas, inclusive parentes próximos e amigos. Ou, como quer Sábato, refugiou-se no interior de seu próprio túnel, dentro da sua mente. 

Mesmo aprisionado na incomunicabilidade que constrói em torno de si, Castel tem sua atenção atraída para a bela Maria Iribarne. Ela identifica, deslumbrada, um quadro seu durante a abertura de uma exposição. A pintura, curiosamente, retrata a própria situação em que ambos se encontram. Na imagem, vê-se uma delicada jovem diante do oceano, observada – pela plateia que olha a pintura, por meio da fresta de uma janela quase completamente cerrada. Castel, então, apaixona-se e fica tão obcecado por ela que admite até mesmo romper sua solidão. O artista passa a refletir, de modo consciente, o quanto a reclusão está presente em sua vida. Como não fez nenhum contato direto com Maria, passa a procurá-la de modo incansável por toda Buenos Aires. Quando a encontra, vem uma enorme decepção porque ela revela que não viu senão ausência de esperança em sua obra. 

Para sua surpresa, entretanto, ela pede insistentemente que a deixe em paz, pois só provoca ruína em quem se aproximam dela. Com o desenrolar da história, esse temor, de fato, ganha forma. A trama se desenrola do momento em que o pintor a vê pela primeira vez e prossegue com o passar dos anos, com ênfase na ausência da mulher desejada. Ainda assim, apaixonado, ele a persegue com o intuito de conhecê-la e de manter o relacionamento que surge entre ambos. Até tudo acabar em tragédia. Narrado em primeira pessoa, o livro de Sábato tem início com a confissão de um crime pelo qual Castel não se arrepende. O autor observou, que, sobretudo, intrigava-o, durante a criação do romance, a importância crescente que iam assumindo o ciúme e o problema da posse física do protagonista. 

Ao acompanhar o personagem, porém, o escritor constatou que ele se distanciava consideravelmente desse tema metafísico para “descer” a problemas quase triviais de sexo, ciúme e crimes. Sábato observou, por fim: “Mais tarde, compreendi a origem do fenômeno. É que os seres de carne e osso não podem jamais representar as angústias metafísicas sob o estado de ideias puras: fazem-no sempre encarnando essas ideias, obscurecendo-as com sentimentos e paixões.” Para ele, “os seres carnais são essencialmente misteriosos e se movem em impulsos imprevisíveis, mesmo para o próprio escritor que serve de intermediário entre esse estranho mundo da ficção, irreal, mas verdadeiro, e o leitor, que acompanha seus dramas”. As ideias metafísicas se transformam, assim, em problemas psicológicos, “a solidão metafísica passa a ser o isolamento de um homem concreto numa cidade concreta, o desespero metafísico se transforma em ciúme, e a história que parecia destinada a ilustrar um problema metafísico se transforma em romance de paixão e crime”. 

De acordo com o autor, Castel procura apoderar-se da realidade-mulher por intermédio do sexo. “Mas esse é um empenho tão vão! Adotei a narrativa na primeira pessoa, depois de muitas tentativas, porque era única técnica que me permitia passar a sensação da realidade externa tal como a vemos cotidianamente, a partir de um coração e de uma cabeça, a partir de uma subjetividade total”. Sábato pretendia passar ao leitor a noção de que seu protagonista, à medida que mergulhava nas trevas, ao longo da história, construía para si um túnel, só que sem saída. Ou seja, esse caminho escuro e perturbador não teria retorno, seria uma rua sem saída e sem possibilidade de volta. No outro extremo, sua ambígua vítima, Maria, mostra-se o tempo todo mergulhada em luzes e sombras e se recusa a sair de seu casulo, apesar de acenar com a possibilidade de ceder quando o pintor a procura. 

Com clareza, o romance expõe personagens que simbolizam a construção de escudo protetor que eles mesmos criaram ao seu redor, que consideram inviolável e seguro – uma solidão cada vez mais comum nas grandes cidades neste começo de século XXI. O deserto que constroem entre si representa o lado ruim da incomunicabilidade, que impede a interação entre as pessoas e, consequentemente, a vivência de emoções, sensações intensas, do amor e da afetividade. Em paralelo, a história explora o processo criativo, através do qual pode ser possível vencer o isolamento – não por acaso, é no instante em que o pintor espera o retorno do seu exaustivo trabalho que surge Maria, a única mulher a dispor toda a sua atenção em uma obra sua e que parece realmente entender o seu significado. 

A carreira de escritor de Ernesto Sábato começou de modo curioso. Aos 30 anos, ele abandonou uma carreira de físico nuclear que se anunciava brilhante para se dedicar à escrita. Não se arrependeu. Tanto “O Túnel” quanto seu segundo livro, “Sobre Heróis e Tumbas”, desconcertaram o público e a crítica literária, ao tratar dos problemas do mal metafísico, do veneno das ideologias fanatizantes, do passado destruído, da disfunção da literatura no mundo atual. Ele fez questão de manter a individualidade de sua obra. Em entrevista ao escritor e tradutor brasileiro Leo Gilson Ribeiro, enfatizou, de modo crítico e sincero que “há algo muito simples, não pertenço a nenhuma loja ou máfia literária e vivo em um canto escondido do mundo. Que posso fazer, se esse é o meu destino? Há tempos me resignei a esse destino de solidão, ao qual eu mesmo me condenei por minha independência política e por minha resistência em apoiar movimentos na moda, tantos políticos como literários.” Viveu assim até o fim, ao morrer, com 99 anos de idade. 


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