O Vale das Bonecas é um lugar tão inacessível quanto o Monte Everest. Na verdade, é preciso alcançar o topo deste para se chegar àquele. Enfim, raros são os que conseguem. Menos ainda aqueles que se arriscam até o fim. “É uma escalada brutal para se atingir um pico que muitos poucos já viram. Não se sabe exatamente o que há lá em cima, mas a última coisa que se espera encontrar, de fato, é o Vale das Bonecas em um ponto tão alto. E, ao chegar, fica-se lá, aguardando o jorro da alegria que se esperava sentir, mas ele, infelizmente, não vem. Você está longe demais para ouvir o aplauso e se curvar em agradecimento. E não resta mais espaço para subir. Você está só e a sensação solidão é esmagadora. O ar é tão rarefeito, que mal consegue respirar. Você conseguiu e o mundo o chama de herói. Lá embaixo, porém, era mais divertido, quando você começou, carregando consigo nada mais do que a esperança e o sonho de realização. Tudo o que enxergava era o topo da tal montanha. Não havia ninguém para lhe informar sobre o Vale das Bonecas. Mas é diferente quando você atinge o auge”.
Essa foi a forma figurada e inteligente que a escritora estreante americana Jacqueline Susann (1918-1974) encontrou para descrever a fama, essa posição artística social tão cobiçada, em seu mais famoso livro, “O Vale das Bolinhas” – também publicado no Brasil como “O Vale das Bonecas”, lançado originalmente em 1966. No relato aparentemente apenas ficcional que chocou a América, o leitor se depara com personagens que sofrem com a ilusão de estar permanentemente “vivos” no alto da escada social, mas que, na realidade, sobrevivem muito próximos de sensações ruins como a angústia, o desespero e a morte, na glamorosa Hollywood da década de 1940 – a história se passa entre 1945 e 1965. Em seu romance de estreia, Susann explora sem pudores temas como sexo, drogas e cirurgias plásticas para narrar 20 anos da vida de três mulheres que trabalham no mundo do cinema, da sua ascensão ao estrelato e à riqueza e do preço elevado que pagaram para manter seu lugar no universo das celebridades. As amigas Anne, Neely e Jennifer são três garotas jovens, de personalidades fortes, independentes e com muita vontade de viver, que buscam o estrelado. Logo percebem que terão de percorrer um longo e espinhoso caminho. Mas conseguem chegar lá.
Seus sonhos de vida, entretanto, começam a se despedaçar em um mundo de traições e cruel e não lhes resta outra saída para sobreviver senão recorrer ao consumo em quantidade de “bolinhas”, como são chamadas as drogas sintéticas em forma de comprimidos calmantes, excitantes, ansiolíticos ou opiáceos. Nas primeiras páginas, o leitor conhece Anne Welles, garota interiorana recém-chegada da pequena Lawrenceville. Está em Nova York para tentar a sorte. Uma agência de empregos a recomenda a um famoso escritório de advogados. Na pensão onde ela vai morar, conhece Neely, determinada a ser uma dançarina bem sucedida no show business. A sorte lhe bate à porta, pois é chamada para substituir a cantora e lenda viva Helen Lawson, em um espetáculo na Broadway. Seu caminho até à fama se completa, mas as coisas começam a dar errado quando se torna uma famosa bailarina, alvo do interesse de todos. A terceira personagem, Jennifer North, garota belíssima que se destaca por sua altura, assim como os seus belos seios, quer ser atriz e conquista o sucesso na França.
As três conseguem manter uma amizade ao longo de três décadas e se tornam, muitas vezes, a família que não têm, em um mundo marcado pela ambição, pelo poder, pela busca do amor e pela traição. O glamour e a beleza também são presenças constantes na vida delas, assim como a dependência por drogas e do álcool. Com tristeza, descobrem que as amizades verdadeiras, do mesmo modo que o amor sincero entre homem e mulher, são sentimentos raros na roda dos famosos. Mesmo assim, acham-se acima de qualquer pessoa, pois são elas que têm o poder e o dinheiro. Egocêntricas, só pensam em si mesmas e reagem mal à rejeição e, quando isso, acontece a fuga possível é ingerir pílulas como anestésicos ou remédios da felicidade. São pílulas excitantes e para dormir, nas cores azuis e vermelhas, usadas para afastar a realidade da vida ou para ver se é possível manter o equilíbrio emocional. São as “bolinhas” mortais da gente angustiada do Vale das Bonecas, que alguns chamam de bilhetes mágicos que levam à paz, ao esquecimento e, não raro, à morte.
Além de ficar mais de 60 semanas consecutivas na lista de best-sellers do jornal “The New York Times”, Jacqueline Susann se tornou uma das primeiras mulheres – e certamente a primeira autora de literatura dita “comercial” – a ocupar o topo das vendas no mercado americano. Escrito em terceira pessoa e dividido entre os pontos de vistas das três protagonistas, o livro tinha muito de sua própria vida, certamente. Nascida na Filadélfia, filha de professora primária e de Robert Susann, famoso pintor retratista, a autora jamais escondeu que foi deslumbrada desde os seis anos de idade pelo brilho dos holofotes, pois queria ser atriz. Dez anos depois, mesmo sob protestos da família, partiu para a atmosfera intoxicante da Broadway, em Nova York. Apos ter aparecido em varias peças teatrais importantes, achou melhor que ela mesma escrevesse uma peça, “Lovely Me”, encenada na Broadway. No entanto, como todo mundo aplaudisse os atores mas ignorasse a aurora, Susann voltou a representar, desta vez na televisão. A sua carreira foi fulgurante, passou dos dramas às comédias e aos grandes programas de auditório, até ganhar e manter por quatro anos consecutivos o titulo de “atriz mais bem vestida da televisão”.
“O vale das bolinhas” acumulou 30 milhões de exemplares vendidos somente nos EUA e traduções para vinte línguas. Seu sucesso e popularidade, porém, não a fizeram ganhar muitos amigos dentro do establishment literário. O badalado jornalista e escritor Truman Capote (1924-1984), um dos nomes mais influentes e ovacionados dos EUA na década de 1960, respondeu em um programa de televisão de grande audiência, quando lhe perguntaram o que achava de Jaqueline Susann: “Ela parece um caminhoneiro travesti”. Depois que a editora de Susann exigiu um pedido de desculpas, Capote declarou, no mesmo programa, que queria se desculpar não com a escritora, mas “com todos os motoristas que possam ter se ofendido com o seu comentário”. Gore Vidal (1925-2012) não foi menos direto: “Esta mulher não escreve, ela bate à máquina!” Capote e Vidal mostraram uma visão limitada ao analisar o romance apenas pelo ponto de vista técnico. Ou seja, pelas suas (faltas de) virtudes literárias. Em completa sintonia com seu tempo, a autora rompeu os tabus da vida das celebridades e dos endinheirados, até então um mundinho de deslumbramento, tratado como ambientes cobiçados de histórias de amor e sucesso simplesmente, um reino fantasioso de príncipes e princesas que jovens ambiciosos americanos sonhavam em fazer parte.
Em 1967, o livro virou filme, dirigido por Mark Robson e estrelado por Barbara Parkins, Patty Duke, Sharon Tate, Paul Burke e Susan Hayward, entre outros. No primeiro momento, de modo geral, “O Vale das Bolinhas” foi visto como pura literatura de entretenimento. Aos poucos, porém, tornou-se um dos casos raros de obras consideradas “clássicas” e que serve para diversão. Segundo os primeiros críticos, não havia em sua estrutura linguagem profunda ou sofisticada, mas reconheceram que sua leitura é muito sedutora. O tempo, entretanto, transformou-o em um clássico da contracultura e da subversão, por confrontar uma das instituições sagradas para os americanos: a indústria do cinema. Polêmico pela abordagem mais próxima do desbunde da contracultura – ancorada no tripé sexo, drogas e rock and roll –, o livro melhorou com o passar de quase cinco décadas, com seus personagens muito bem construídos e envolventes. Em mais de 500 páginas, mesmo ambientada em duas décadas antes, a trama é atual e explora muito bem a época em que foi publicada. O romance foi mal recebido pela crítica – cujo universo de convivência estava muito próximo daquele retratado no livro.
No texto da contracapa da primeira edição brasileira, de 1968, pela Editorial Grijalbo, de São Paulo, lê-se um alerta ao leitor: “Tudo que você já ouviu sobre este livro é verdade”.Com confiança na força de seu romance, Jacqueline Susann encarou as críticas de nomes importantes do meio literário com bom humor. Ao invés de entrar na discussão, dizia que apenas se considerava uma contadora de histórias. Explicou que sua preocupação estava em criar retratos realistas e em abordar temas novos, que foram acolhidos por leitores de todo o planeta. Justiça seja feita: a autora queria de fato desmascarar a hipocrisia que velava a indústria do cinema havia muito tempo. Por outro lado, no aspecto técnico, descontrói o conceito de romance feminino ou do folhetim convencional, criado na França no século XVIII e que chegou com vigor ao começo da segunda metade do século XX. Susann não merece respeito apenas pela sua ousadia temática. Mas por ter escrito um livro que se impôs como obra eterna, porque fala de sentimentos que fazem parte da essência humana.
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