O ostracismo que engoliu o escritor norte-americano Herman Melville (1819-1891) nos seus últimos 34 anos de vida, quando sobreviveu como um obscuro inspetor de alfândega, não foi um acontecimento isolado em sua época. Outros autores relevantes passaram por isso ou viveram em penúria, como Edgar Allan Poe (1809-1849). No caso dele, porém, tal situação deveu-se, em parte, pelo fato de sua obra ter sido pouco compreendida, o que só ocorreria no século seguinte – especialistas afirmam que ele antecipou em sua ficção alguns dos temas mais recorrentes da literatura do século XX, como o niilismo, o existencialismo e o absurdo, em textos brilhantes como a novela “Bartleby, o Escriturário”. Melville publicou seu livro mais conhecido ainda hoje, o volumoso “Moby Dick” (1851), aos 32 anos. E o último, aos 38 anos. Viveria as décadas seguintes atormentado pelo esquecimento a que foi submetido, que se manifestava em especial pelo desinteresse de editores em lançar seus novos trabalhos.
Nova-iorquino de nascimento, ainda criança, Melville se mudou com a família para a cidade de Albany, onde enfrentou dificuldades após a falência dos negócios do seu pai. Obrigado a abandonar os estudos e sem conseguir emprego fixo, trabalhou em um navio baleeiro entre 1841 e 1844, quando viajou pela Polinésia e Havaí. Ao retornar a seu país, decidiu contar as aventuras de marinheiro que viveu nos dois primeiros romances de sua autoria, “Typee” (1846) e “Omoo” (1847). Ambos se tornaram sucessos instantâneos em uma época em que esse tipo de narrativa heroica ainda tinha grande aceitação. Empolgado, dedicou-se a escrever com uma velocidade impressionante. Em dois anos, saíram mais três obras de ficção: “Mardi” (1849), “Redburn” (1849) e “White-Jacket” (1850). Como leitura, Melville se encantara fazia tempo com os dramas de palco de William Shakespeare (1564-1616). As peças do dramaturgo inglês e a amizade com o escritor Nathaniel Hawthorne (1804-1964) – autor do clássico “A Letra Escarlate” – influenciaram decisivamente seu trabalho, que ganhou características mais metafísicas, como em “Moby Dick”, um dos grandes clássicos da literatura universal. No romance, ele mostrou a obsessão do Capitão Ahab em matar uma gigantesca baleia branca. Nas entrelinhas, porém, expressa suas inquietudes mais profundas, como os falsos triunfos e derrotas do ser humano e a luta contra impulsos assassinos.
Seus dois últimos trabalhos foram “Contos de Piazza” (1856) e “O Vigarista – Seus Truques” (1857), uma obra-prima que só começou a ser redescoberta na segunda metade do século XX. Na história, Melville explora com intensidade que lhe era peculiar sua descrença no homem. Décimo romance do autor em onze anos – lançou também uma coletânea de contos –, escrito seis anos após “Moby Dick”, foi todo ambientado em um tradicional vapor do século XIX, que fazia rota pelo rio Mississippi em direção à cidade de New Orleans. O livro apresenta vários personagens que se misturavam em uma sucessão de histórias, truques e artimanhas e cujas trajetórias serviram de pretexto para diálogos memoráveis sobre as relações sociais e pessoais. A matéria-prima para a trama veio de uma experiência pessoal quando, aos 20 anos de idade, viajou em um barco a vapor pelo mesmo rio americano e percebeu que alguns passageiros estavam ali para dar golpes sem serem descobertos. Anos depois, ao recordar a experiência, o escritor deve ter compreendido que o navio, com a diversidade de seus usuários, que se alternavam a cada parada, poderia constituir um cenário eficaz para representar uma espécie de comédia da vida que ele queria criar.
Nesse contexto, a presença dos vigaristas, por força dos seus truques e disfarces quase sempre eficientes, garantia algo importante no plano de obra de Melville: estabelecer um personagem capaz de representar vários papéis. Muito influenciado por Shakespeare especialmente nessa obra, ele se propôs a encarar o mundo como um palco onde homens são forçados a interpretar os mais diversos tipos para sobreviver. Assim, no ambiente peculiar de um navio, o vigarista mostra talento como ator para enganar suas vítimas. O autor repete, desse modo, como fizera em “Moby Dick”, seu estudo sobre o espírito humano e questiona até que ponto somos forçados a criar personagens que representamos no dia a dia, seja no local de trabalho seja nas relações pessoais e emocionais. Com seus longos títulos explicativos em cada capítulo, ele praticamente concebe um tratado filosófico a respeito da artimanha e da capacidade de dissimulação das pessoas em busca de vantagens. Além disso, sua complexa estrutura narrativa, cheia de cruzamentos, tem sido considerada por estudiosos de sua obra bastante moderna para a época, o ajuda a compreender porque o livro foi quase ignorado naqueles anos.
Os passageiros do barco formam o que se poderia chamar de uma extensa fauna humana. Entre eles, os mais diferentes tipos de vigaristas, que se revezam de golpe em golpe com o propósito de arrancar qualquer soma possível dos passageiros menos atentos ou ingênuos. Suas picaretagens são mostradas por meio da desfaçatez, da ironia e da encenação. O título do romance se refere à personagem central, um sujeito ambíguo que entra na embarcação às pressas, como se tivesse fugindo de algo. Isso acontece exatamente no Dia da Mentira (1º de abril). Depois de estudar boa parte dos presentes e identificar suas vítimas potenciais, ele parte para testar a confiança dos alvos, cujas reações variadas formam boa parte da narrativa. Não é difícil o leitor compreender que Melville usa seu bandido como uma metáfora para os aspectos mais amplos da identidade americana e do seu aspecto humano que unificam os personagens de outras formas diferentes. O autor também emprega fluidez do rio como uma reflexão e pano de fundo das identidades cambiantes de seu “vigarista”.
Assim, o livro foi escrito como sátira social e cultural, ou uma alegoria ou um tratado metafísico. Tudo isso expressado por meio de temas como sinceridade, identidade, moralidade, religiosidade, materialismo econômico, ironia e cinismo. Outro aspecto importante em “O Vigarista” são os diálogos e as descrições brilhantes dos personagens. “Goneril era jovem, graciosa e ereta – aliás, ereta demais para uma mulher; a pele era naturalmente rosada e seria encantadora se não fosse por certa qualidade rígida e crestada, como cerâmica levada ao forno e esmaltada”, descreveu ele. “Os cabelos eram de um castanho escuro e brilhante, mas usados em cachos curtos envolvendo a cabeça. A conformação de seu corpo de índia não deixava de ter efeitos prejudiciais no busto, ao passo que a boca seria bonita se não fosse por indícios de um bigode. No total, sua aparência, auxiliada pelos recursos da toalete, era tal que a distância alguém poderia achá-la bem bonita, embora num estilo de beleza algo árido e peculiar.” Noutro trecho memorável, Frank pede dinheiro emprestado a um amigo próximo, por causa de uma necessidade urgente. Depois de um diálogo impagável, Charlie não atende ao pedido. O outro quer saber o motivo. “Porque o meu preceito proíbe. Dou dinheiro, mas nunca o empresto, e, naturalmente, o homem que se diz meu amigo está acima de receber esmolas”.
Muitos críticos acreditam que a escolha de Melville para situar o romance no Dia da Mentira ratifica a natureza satírica da obra, a partir da sua visão ácida de mundo, que se comprovaria no descaso que sofreu depois como escritor. Ele deixou claro esse aspecto em uma carta ao amigo Samuel Savage: “É, ou parece ser, uma espécie inteligente de coisa, para perceber que tudo o que acontece a um homem nesta vida é somente por meio de piada, especialmente seus infortúnios, se os tiver. E também é importante ter em mente, que a piada é passado rodada bastante liberal e imparcial, de modo que não são muitos têm direito a fantasia de que eles, em particular, está recebendo o pior de tudo”. O autor teria incluído referências bem humoradas a figuras literárias importantes do século XX. Mark Winsome foi inspirado em Ralph Waldo Emerson (1803-1882) e seu “discípulo prático” Egbert seria Henry David Thoreau (1817-1862). Charlie Noble nasceu do seu amigo Hawthorne. E Poe inspirou um mendigo na história.
Quando publicou “O Vigarista”, a reputação literária de Melville nos EUA como escritor estava em declínio, mesmo passado tão pouco tempo do lançamento de ”Moby Dick”. Tanto que seu editor inglês já não mais aceitava propostas de novos títulos. Com menos de 40 anos, certamente não podia imaginar que aquele seria seu último trabalho ficcional inédito editado em vida. A ênfase na significação simbólica dos personagens, como observou o escritor tradutor brasileiro Rubens Figueiredo, e a preferência pelo aspecto dúbio de suas ideias não estavam, de fato, favorecendo a compreensão do público. Figueiredo observa que, parece, ele não concebeu o livro propriamente como um romance, mas uma história sem final, segundo gostava de dizer. Sua unidade, portanto, está no barco, no rio, no vigarista e no tema, “repisado na sucessão de diálogos filosóficos e teológicos que compõem o livro: a irremediável tolice dos homens”. Além disso, sua visão pessimista da humanidade, ao mesmo tempo cínica e melancólica, aproximou-o de Jonathan Swift (1667-1745), de “As Aventuras de Gulliver”, e fez com que parte da narrativa se achasse formulada como sátira das teses mais românticas e ingênuas de Emerson e Thoreau a respeito da natureza humana.
Figueiredo acrescenta: “De fato, o ceticismo natural de Melville, que em ‘Moby Dick’ criava uma tensão constante com sua vontade de crer, converte-se agora em cinismo” em “O Vigarista”. Em contrapartida, explica o tradutor, esse sentimento o tornou também alvo do mesmo ceticismo inicial, que demonstrava ter forças para tudo abranger. “Todavia, algo misterioso persiste para o leitor na intenção desse estranho esquema. Seria algo alimentado por um estilo indireto e esquivo. Não é de se espantar, portanto, que as afirmações possam significar ser oposto, da mesma maneira que um personagem pode ser o disfarce do outro”.
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