[85 de 100] O insustentável peso do ser, segundo Julio Cortázar

coluna85Sexto livro do escritor argentino Julio Cortázar (1914-1974), o pouco lembrado “Histórias de Cronópios e de Famas” chegou às livrarias argentinas um ano antes de “O Jogo da Amarelinha”, publicado originalmente em 1962. Levou sete anos para ficar pronto. Foi escrito entre 1952 e 1959, no período em que o autor viveu entre as cidades de Roma e Paris. Para muitos, assim que saiu, foi visto como um livro difícil de definir e enigmático demais para outros. Lido meio século depois, parece mais acessível, sem perder o encanto e fascínio de sempre. Sem dúvida, sua originalidade e falta de compromisso com fórmulas e regras literárias ajudaram nesse “estranhamento”.  A “Encyclopédie Universalis” francesa chamou a obra de “desconcertante” e acrescentou: “Sobre um fundo de caricatura da vida em Buenos Aires, e uma seleção variada, insólita, de notas, de fantasias e de improvisações”. 

A mesma enciclopédia afirma ainda que seu humor é “melancólico, irônico ou violento, cheio de uma curiosa poesia, ali se desdobra em um estilo carregado de imagens intensas e de achados verbais e psicológicos”. Cortázar, na verdade, escreveu um livro voltado para a essência do homem e não a seus conterrâneos e compatriotas. Dividido em quatro partes, trata de diversos temas de formas diferentes e inusitadas, quase como crônicas de humor: “Manual de instruções”, “Estranhas ocupações”, “Matéria plástica” e só então vem as “Histórias de Cronópios e de Famas” do título. Todos são compostos de observações, geralmente curtas, que se completam e compõem um amplo painel sobre as fatalidades e descaminhos do homem. 

No primeiro bloco, chamado de “Manual de instruções”, o leitor se depara com um manual de dicas de como sobreviver no meio da humanidade atípico e divertido, sem dúvida, porém filosófico, de caráter existencialista – corrente ainda influente na Europa na década de 1950. Assim, faz uma série de considerações que mais parecem anotações sobre a vida do que narrativas de ficção, com historinhas convencionais. “A tarefa de amolecer diariamente o tijolo, a tarefa de abrir caminho na massa pegajosa que se proclama mundo, esbarrar cada manhã com o paralelepípedo de nome repugnante, com a satisfação canina, de que tudo esteja em seu lugar, a mesma mulher ao lado, os mesmos sapatos e o mesmo sabor da mesma pasta de dentes, a mesma tristeza das casas em frente, do sujo tabuleiro de janelas de tempo com seu letreiro HOTEL DE BELGIQUE”. 

Em outro texto, ele quer orientar o leitor a uma experiência de autoconhecimento e de constatação do mundo: “Para chorar, dirija a imaginação a você mesmo, e se isto lhe for impossível por ter adquirido de acreditar no mundo exterior, pense em um pato coberto de formigas e nesses golfos do estreito de Magalhães, nos quais não entra ninguém, nunca.” Há ainda orientações para cantar, a forma de sentir medo, entender três quadros famosos, matar formigas em Roma, subir uma escada e dar corda do relógio. O bloco “Estranhas ocupações” enfatiza algumas situações absurdas de uma família bem peculiar, como pretexto para fazer uma série de críticas ao cotidiano e às pessoas, além de boas doses do que se poderia chama de humor nonsense

Em “comportamento no velório”, Cortázar critica o excesso de gente que não se importa com o defunto, mas está lá por necessidade de fingimento para se fazer presente e importante. Os textos de “Matéria plástica”, que nunca passam de duas páginas, trazem abordagens que parecem meio sem pé nem cabeça até envolver o leitor em sua unicidade e sentido. Exploram também situações cotidianas, como a fidelidade quase canina de uma secretária, o ritual de cortar a pata de uma aranha e enviá-la pelos Correios ao Ministro das Relações Exteriores, contar árvores, espalhar açúcar sobre a mesa de um café, observar a geografia das formigas etc. sobram irreverência e provocação quanto às relações pessoais e sociais. “Trabalho há anos na Unesco e em outros organismos internacionais, mas, apesar disso, conservo algum senso de humor e especialmente uma notável capacidade de abstração, isto é, se eu não gosto de um sujeito, apago-o do mapa com uma simples decisão e, enquanto ele fala e fala e eu me passo para Melville o coitado pensa que o estou escutando”. 

Para a última parte, o escritor criou três tipos de seres na sociedade: os cronópios, os famas e as esperanças. “O leitor irá descobrindo por si mesmo à medida que entra em um mundo fantástico desvendado pelo autor; e nisto achará um prazer que se renova a cada instante”, observa a tradutora brasileira Glória Rodríguez. Os primeiros são alegres, criativos, tidos como loucos e sonhadores e se divertem com as coisas mais simples, além de serem muito agradecidos por atos generosos. Por essas características, acabam por viver poeticamente o mundo. Cada conto revela algo relacionado à personalidade desses personagens, que aparecem em situações muitas vezes absurdas e em outras mais comuns, do dia a dia. Segundo o escritor, a força dos cronópios é a poesia. “Eles cantam, como as cigarras, indiferentes ao prosaísmo do quotidiano; e quando cantam, esquecem tudo, são atropelados, perdem o que levam nos bolsos e até a conta dos dias”. 

E os famas? São burocráticos, calmos e metodológicos. “Os famas dançam trégua e dançam catalã, danças essas inventadas pelo seu criador e não se encontram em nenhum folclore argentino ou latino-americano. Os cronópios e as esperanças conhecem outra dança, chamada esperança”, explica o autor. Segundo ele, trata-se de “seres acomodados, prudentes, dados ao cálculo, e embalsamam suas recordações”. Se a família vai se hospedar em um hotel, mandam um na frente para verificar os preços e a cor dos lençóis. “Os famas são seres acomodados, prudentes, dados ao cálculo, e embalsamam suas recordações. Também sabem tudo da vida prática, mas os cronópios sentem por eles uma compaixão infinita”. Ele define as esperanças como “sedentárias, deixam-se viajar pelas coisas e pelos homens, e são como as estátuas, que é preciso ir vê-las, porque elas não vêm até nós”. 

Cortázar descreveu seus personagens como tipos “tão estranhos que eu não conseguia vê-los claramente, uma espécie de micróbios flutuando no ar, uns glóbulos verdes que pouco a pouco ia tomando características humanas”. Ao longo dos anos, essas criaturas ganharam conotações que as incorporaram ao vocabulário literário e aos dicionários. Desse modo, cronópios e famas seriam sinônimos e maneiras de se classificar tipos de pessoas completamente diferentes. Os famas representariam a alegoria das pessoas que gostam de um mundo muito ordenado, correto, na ordem, do tipo que sempre olham no relógio antes de fazer qualquer coisa. Como são muito organizadas, irritam-se com certa facilidade. Para a tradutora Gloria Rodriguez, as histórias de cronópios e famas não se situam como uma ilha à parte. “Ao contrário, elas são muito elucidativas de uma visão característica do autor, que aqui escolhe a arma dohumor e o caminho do fantástico para denunciar um mundo onde o sentido do humano se perdeu”. 

E assim Cortázar constrói um livro divertido, mas que evidencia nas entrelinhas uma visão pessoal da natureza humana, por ele relacionada com a forma cartesiana de pensar. Considerado por muitos críticos o mais insólito e surpreendente livro de Cortázar, a obra foi descrita pelo seu primeiro editor brasileiro, Ênio Silveira (1925-1996), como um volume “de espantosa riqueza inventiva, estranha poesia e humor adstringente, que revela o que há de fantástico e de raro na vida quotidiana”. Uma visão que se mantém perfeita, tantas décadas depois. “Em suas páginas de novo encontramos esse admirável escritor argentino de projeção universal empenhado em redescobrir o sentido humanoque parece perdido em nosso mundo contraditório, caótico e perturbador”. O leitor irá descobrindo por si mesmo, à medida que entra no mundo fantástico desvendado pelo autor, uma narrativa inteligente, sedutora e absolutamente singular.


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