[88 de 100] Manifesto contra a psiquiatria policialesca, segundo Carl Solomon

ACIDENTES

O movimento beat, o beat generation ou simplesmente os beatniks, como se sabe, não se restringiu aos seus três nomes mais conhecidos, Jack Kerouac (1922-1969), Allen Ginsberg (1926-1997) e William S. Burroughs (1914-1997), autores, respectivamente, de “Pé na Estrada”, “Uivo” e “Almoço Nu”. Talentos de pouca produção como Diane di Prima (1934), Lawrence Ferlinghetti (1919) e Carl Solomon (1928-1993) também deixaram trabalhos marcantes ou relevantes – este publicou apenas dois curtos livros, “Mishaps, Perhaps” e “More Mishaps”, editados por Mary Beach em 1966 e 1968. Apelidado de “dadaísta do Bronx”, “poeta metálico” e “poeta extinto”, Solomon era tão ligado ao grupo que a ele foi dedicado o longo e profético poema “Uivo”. Também chamado de “poeta em migalhas”, “cronista do absurdo”, “contista fragmentário”, ele fez o caminho inverso e, no fim da vida, ocupou-se para sobreviver de empregos não-literários como vendedor e mensageiro. 

Reunidos no Brasil pela L&PM no volume “De Repente, Acidentes”, lançado em 1985, os livros de Solomon oferecem uma visão intensa e singular do outro lado da existência, sem Deus nem natureza, como descreveu seu editor brasileiro na época. Espécie de Antonin Artaud (1896-1948) – poeta, ator, escritor, dramaturgo, roteirista e diretor de teatro francês de aspirações anarquistas –, ele se diferenciou dos outros beats por ser escritor não-místico e demasiado urbano, segundo seus biógrafos. Uma postura que ele expôs em seus indignados libelos contra a psiquiatria policialesca e repressiva dos asilos e hospícios americanos. E, também, nos famosos ensaios que escreveu sobre Artaud, Van Gogh, Baudelaire e outros gênios considerados visionários. 

Seus curtos textos com reflexões, delírios, fantasias e ficção também fazem flashes da vida beat pelos becos, ruelas e apartamentos encardidos da cidade de Nova Iorque, entre os anos de 1940 e 1960. “Monsieur Solomon continua sua batalha histórica, todas as forças satânicas da razão pura contra as satânicas legiões de pensamentos minúsculos que emergem de seu inconsciente civilizado… Eternas banalidades da linguagem sabedoria dos anos sessenta A. D. pós-marxistas enfrentando as banalidades da política domesticada e estrangeira do século XX”, escreveu Ginsberg, em junho de 1967. Recebido pela crítica como um livro ousado, digno e arrebatador, “De Repente, Acidentes” causou impacto até mesmo nos companheiros do movimento beat. Ginsberg se perguntou se era uma obra de humor ou “sério para valer”. E observou que “é uma substância tão interessante quanto o Bronx, um estilo raro na América, semelhante à evolução do pensamento francês refletindo sobre as atualidades cotidianas”. 

Estigmatizado como louco desde a juventude, mas aceito e respeitado pelos companheiros da boemia e do meio literário, Solomon foi internado várias vezes em hospitais psiquiátricos, sofreu eletrochoques e, por identificar-se com Artaud e Van Gogh, dizia que se considerava um “suicidado” pela sociedade de seu país. “É absurdo que eles me achem louco. Logo eu, que sou a pessoa mais santa e idealista deste mundo desvairado”, escreveu ele. E acrescentou em seguida: “Os verdadeiros santos eles consideram loucos, eles é que são loucos. Eu, que sou letrado, eu que sou poeta, eu que sou bom, eu que renunciei o mal, que e não uso drogas, eu que não roubo, eu que não sou comunista, eu que tento agradar, eu que perdôo os nazistas, eu que não xingo, eu que sou tranqüilo e auto-suficiente – sou insultado, violentado, etceterado por vocês apenas por não corresponder ao seu estereotipo imaginário de mim”. 

Nascido em 30 de março de 1928, lamentavelmente Solomon se tornou mais famoso principalmente por Ginsberg ter lhe dedicado “Uivo”, do que pelo valor de sua própria (curtíssima) obra. Portanto, sem esse reconhecimento, seria definido nos últimos anos de vida como um verdadeiro beat renegado, ou parcialmente descoberto. Alguns nem ao menos o consideraram como um escritor. Uma injustiça. Para outros, seu texto límpido e profético comprovaria que os verdadeiros loucos não eram exatamente os pacientes dos hospícios. Solomon perguntou: “Quem são vocês, bando de canalhas nojentos com sua falsa respeitabilidade? Seus babacas vestidos de polícia. Eu me recuso a servir. Eu me recuso a ajudar Chiang Kai Chek. Eu me recuso a ajudar Franco!” A implicância com ele, devia-se, em parte a episódios como a vez que em que arremessou uma salada de batatas durante uma aula sobre dadaísmo na Universidade City College of New York. Depois, justificou que ele e seus amigos faziam um manifesto “em prol da arte”. 

Ele próprio deu margem a um tratamento diferenciado das pessoas, ao procurar, por conta própria, ajuda médica no New York State Psychiatric Institute. Ali, internou-se e pediu que lhe aplicasse um tratamento de lobotomia para por fim a sua angústia psicótica que o supostamente acometia. Enfim, queria mesmo ser “suicidado”, para parafrasear sua famosa afirmação. Por outro lado, essas experiências mudaram sua vida em outro sentido. Ele e Ginsberg se conheceram em uma sala de espera de um hospital psiquiátrico onde Ginsberg visitava sua mãe. Por causa dos seus problemas mentais, Solomon era recorrente por lá. Possuía uma inteligência hiperativa e reza a lenda que mesmo sendo dois anos mais novo, não só vivia dando conselhos, mas instruindo Ginsberg sobre diversos assuntos literários e que o autor de “Uivo” tomava nota de tudo o que Solomon dizia.

O escritor foi criado no Bronx, em Nova York, em uma família judia que havia migrado da Europa para a América.  Carl Wolfe Solomon cresceu sobre o autoritarismo patriótico do pai, um homem de ideias tidas como reacionárias e extremas. Ele obrigava o filho a saudar a bandeira americana sempre que passavam por uma. Com sua morte, em 1939, o futuro escritor e poeta experimentou um “sentimento de perda” e uma “sensação de incerteza” que o jogaram para longe de influências conservadoras. Depois de servir como marinheiro durante a Segunda Guerra Mundial, desembarcou em Paris em 1947, onde se filiou ao Partido Comunista Francês, o que o colocou em conflito com seu passado familiar reacionário. Naquele país, vivencia experimentos estéticos, éticos e etílicos que mudariam sua cabeça para sempre. No ano seguinte, ao perceber que não estava bem de cabeça, aos 20 anos, internou-se para tratamento mental.

Alguns dias antes do Natal de 1949, após ser liberado do hospital, ele alugou um apartamento na West Seventeen Street. Ginsberg convidou vários amigos para um open-house em celebração à virada para a segunda metade do século. Foi nesse evento que se juntaram pela primeira vez Jack Kerouac, Neal Cassady, além, é claro, de Solomon, entre outros. Segundo o prefácio do livro “De Repente, Acidentes”, nesta festa Kerouac se encantou por Cassady e os dois atravessariam os EUA pela rodovia Rota 66, experiência que, posteriormente, serviria de inspiração para a criação do personagem Dean Mortiarty na obra-prima beat “Pé na Estrada”. A aproximação entre Ginsberg e Solomon se tornou ainda maior quando o primeiro, por volta de 1952, procura A. A. Wyn, tio de Solomon, em busca de ajuda para publicar obras de dois de seus amigos. Wyn havia fundado a Ace Books, editora nova-iorquina especializada na publicação de obras de fantasia e ficção-científica e era editor da linha encadernada Wyn Books. 

Os dois amigos eram ninguém menos que os desconhecidos William S. Burroughs e Jack Kerouac. 

Assim como aconteceu com outros editores, os originais de “Pé na Estrada” foram recusados, mas “Junky”, de Burroughs, que vários críticos considerariam a referência maior da geração beat justamente ao lado de “Pé na Estrada” foi publicado dentro de uma coleção de gosto duvidoso da Ace chamada “Two Books In One” (“dois pelo preço de um”). Em 1956, mesmo ano de publicação de “Uivo”, Solomon sofre nova recaída e voltou a ser internado. Embora nunca tenha tirado seu sustento exclusivamente como escritor, foi em clínicas e hospitais para doentes mentais que seus escritos e memórias começaram a tomar forma e viriam a ser reunidos sem ordem cronológica. Outra obra sua, considerada por muitos como sua obra-prima, é o ensaio “Emergency Messages” (“Relato do Asilo: reflexões de um paciente após o choque” que originalmente fez parte da antologia “The Beat Generation and the Angry Young Man”, de Gene Feldman e Max Gartenberg) foi publicada nos EUA em 1989.  

Carl Solomon era indignado com a psiquiatria repressiva. Caçoava do burburinho da sociedade em cima dos beats, fosse ele positivo ou negativo. Muitos historiadores e críticos concordam que ele foi mais importante para Ginsberg e “Uivo” e para a geração beat do que Neal Cassady se tornou para Jack Kerouac e “Pé na Estrada”. Portanto, “De Repente, Acidentes”, é um livrinho indispensável.



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