Muito antes do quixotesco herói Forrest Gump da literatura e do cinema, criado pelo escritor americano Winston Groom, existiu o anti-herói Joseph Švejk. Ele é o protagonista de um romance inesquecível, a obra-prima “As Aventuras do Bom Soldado Švejk”, lançado em 1920 pelo escritor e humorista tcheco Jaroslav Hašek (1883-1923), morto prematuramente com apenas 40 anos de idade. De pensamento anarquista, Hašek criou um personagem singular na história da literatura, que serviu de pretexto para ele fazer uma contundente crítica à estupidez de qualquer guerra e aos abusos e destemperos desmedidos de quem a comanda, em prejuízo e morte de milhares ou milhões de pessoas. Em quase 700 páginas, esse relato escrito e publicado pouco depois do fim da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) permite ao leitor acompanhar, de modo empolgante, o que se poderia chamar mais apropriadamente de as “desventuras” de um soldado de baixa patente com pouco mais de 40 anos, que havia sido dispensado do serviço militar por ser considerado pelos oficiais e médicos um perfeito idiota. Com o conflito, porém, Švejk revela uma incrível, atrapalhada e hilariante capacidade de se meter nas piores confusões e sobreviver a todas elas.
Descrito pelos críticos como um tipo ambíguo, cujo perfil confuso o coloca entre o tolo e o dissimulado, o soldado não se envolve em problemas por causa apenas de sua sagaz ingenuidade ou desastrada esperteza, disfarçada em longas explanações muitas vezes fora de contexto. Ele é fruto do meio. Como em qualquer conflito armado, tudo à sua volta é extremamente cruel e parece caminhar para a total destruição, mesmo com a aparente hilaridade que o cerca, juntamente com seus inconstantes companheiros. Na epopeia desse militar do Exército austro-húngaro, tudo começa com o assassinato do arquiduque da Áustria Francesco Ferdinando (1863-1914) e sua esposa, que marcou o início do conflito. Nesse momento, Švejk, com seus comentários inapropriados, é preso e acusado de “alta traição”. Ao ser interrogado por uma junta médica, porém, acaba declarado demente e levado para um manicômio, de onde é expulso. Sem rumo, alista-se para combater na guerra por seu país. Desconfiado, seu recrutador se limita a encaminhá-lo à ordenança de um capelão que, descobre, é mulherengo, perdulário e alcoólatra. O homem o “vende” em um jogo de cartas a um tenente.
Švejk não tem sorte e a desastrosa atuação ao cumprir ordens leva à sua transferência, como castigo, para o front da guerra, na Hungria. No caminho, ele se perde pelo interior da antiga Boêmia, em uma sucessão de peripécias até retomar a rota de seu pelotão. Ao se apresentar, entretanto, recebe ordem de prisão pelos próprios companheiros, por suspeita de espionagem – teria sido recrutado pelos russos. Em um lance de sorte e astúcia, ele escapa, por pouco, de ser enforcado. E, assim, prossegue na luta para sobreviver em meio ao caos. O leitor percebe, claro, que Švejk não tem uma exata dimensão do que pensam a seu respeito, inclusive quanto à opinião sobre ele por parte de quem o comanda, como se vê nessa divertida passagem, em que comenta: “Da boca do desgraçado Baloun saíam até pedaços do papel alumínio em que o patê estivera embrulhado”. Em seguida, observa, a seu modo: “Como está vendo, senhor tenente, no final todas as coisas saem, inclusive o patê que se comeu. Eu queria assumir a responsabilidade e o burro aqui se trai desta maneira. É um bom sujeito, mas devora tudo que põem na frente dele. Certa vez, conheci uma pessoa assim. (…) Era tão guloso que, quando os auxiliares de escritório o mandavam buscar salsichas, ele as abria pelo caminho com uma faca e depois tampava os buracos com esparadrapo; o esparadrapo que tinha que usar em cinco salsichas lhe saia mais caro do que uma salsicha inteira”.
Os inúmeros episódios e contratempos fazem da leitura de “As Aventuras do Bom Soldado Švejk”, em edição traduzida diretamente do tcheco, uma experiência ímpar. Longe de ser mero “testemunho” da barbárie, o romance de Hašek usa a comicidade para refletir sobre a insanidade da guerra e dos regimes antidemocráticos. Seus críticos literários acreditam que, ao encarar esse mundo como objeto de ficção, o riso talvez não tenha sido apenas uma escolha do autor, mas a forma possível que encontrou para expressar uma visão implacável da humanidade, após uma experiência terrível – a guerra – que ele vivenciou na pele. O livro é, principalmente, uma incômoda certeza de que para os homens não resta qualquer salvação. O escritor queria, desse modo, ser o mais contundente possível a partir da ideia de que, em situações limites, a partir da noção do triunfo do absurdo, tudo é possível e os heróis ou anti-heróis não são tão infalíveis assim e podem ser vítimas do acaso. Uma visão parecida com a que o sério Stephen Crane (1871-1900) estabeleceu com seu dramático “O Emblema Rubro da Coragem”, de 1895, sobre um soldado medroso que acaba condecorado por ato de heroísmo durante a guerra civil americana, entre 1861 e 1865.
Como considerá-lo tolo se as situações absurdas em que se manteve vêm muito mais da insanidade do contexto em que ele se encontra? O propósito de Hašek era construir uma narrativa implacável de crítica aos paranoicos órgãos de vigilância e repressão do estado austro-húngaro, a corrupção no Exército e o papel da Igreja. Nesse contexto, coloca-os como instituições decadentes, autoritárias e violentas, mantidas por burocratas beberrões, arrogantes e estúpidos. Chamado de épico ao avesso, o romance teve seu personagem tão complexo e fascinante comparado a outros tipos marcantes da literatura universal pelos pontos em comum – “ar ingênuo”, sorriso bondoso e incapaz de qualquer sutileza e, por isso, tido como imbecil –, como Pantagruel, de François Rabelais (1494-1553); Dom Quixote, de Miguel de Cervantes (1547-1616); e Cândido, de Voltaire (1694-1778). O livro do autor tcheco fez tanto sucesso que foi traduzido para mais de 60 línguas. E arrancou elogios do dramaturgo Bertolt Brecht: “Se me pedissem que apontasse três obras literárias deste século que, em minha opinião, farão parte da literatura universal, diria que uma delas é, sem dúvida, As aventuras do bom soldado Švejk”. E de seu colega brasileiro Dias Gomes: “Švejk é o homem em toda a sua pungente e primitiva humanidade, frente ao anti-humano das criaturas descarnadas e desossificadas pelo militarismo e a guerra.”
De família humilde, Hašek abandonou os estudos aos quinze anos de idade para trabalhar em uma farmácia. Determinado, porém, retomou-os depois para se formar em comércio, no ano de 1902. Empregou-se em um banco como escriturário e logo foi demitido, em decorrência do alto grau de vício em alcoolismo, problema que marcaria e abreviaria sua vida. Desde 1900, entretanto, aos 17 anos, mostrou talento para a escrita, quando começou a colaborar em periódicos satíricos e de esquerda. Em 1907, tornou-se redator-chefe do jornal anarquista “Komuna”. Alistou-se no Exército austro-húngaro em 1915, para combater na Primeira Guerra Mundial, mas acabou passando para o lado dos russos — e se comprometendo com a Legião Tcheca, movimento nacionalista contra o domínio austro-húngaro. O detalhe mostra que havia fortes elementos autobiográficos em seu mais famoso romance. Em 1920, de volta a Praga, passou a militar politicamente como comunista e nacionalista, enquanto publicava, por conta própria, “As Aventuras do Bom Soldado Švejk” — projeto inacabado que previa uma série de seis volumes. Faleceu em Lipnice nad Sázavou, uma aldeia tcheca, em 3 de janeiro de 1923.
A primeira e única edição brasileira de “As Aventuras do Bravo Soldado Švejk”, por quase meio século, saiu em 1967 pela Editora Civilização Brasileira e continua a ser vendida pela Internet por até R$ 250. A curiosidade por este livro pode agora ser matada pela ótima edição de 2014 da Editora Alfaguara, também traduzida diretamente do russo.
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