Os livros de temática homossexual tendem a ser transgressores e a causar escândalo. Até esse começo de século XXI tem sido assim. Imagine, então, na Rússia ainda czarista de 1906, quando foi lançado o romance “Asas”, do escritor Mikhail Kuzmin (1872-1936). A obra é considerada o primeiro texto ficcional de temática gay da história da literatura mundial e causou grande consternação no meio intelectual conservador em seu país e em toda a Europa na época. Sem sensacionalismo ou apelos baratos, o livro narra a paixão do adolescente Vanya Smurov pelo seu mentor, o professor de educação artística Larion Stroop, tido como um “pederasta” que o inicia na descoberta do mundo da arte Clássica, Renascentista e Romântica.
Vanya é um jovem órfão de pai que, após a morte da mãe, muda-se para São Petersburgo, levado pelo tio Kólia, que não tem condições de mantê-lo. O menino vai morar na casa dos Kazanski, onde passa a conviver com Natasha, Ida Holdberg e Stroop. No primeiro momento, ele fica chocado quando descobre que seu professor, objeto da sua admiração, frequenta sauna gay e decide fugir daquela relação de pervertidos. Imagina que, para colocar em ordem seus sentimentos conflituosos, muda-se para a região do Volga e se entrega a uma vida interiorana e heterossexual. A experiência que nota ser nauseante com as mulheres do campo não passa de tentativas desajeitadas de sedução.
Por fim, aceita o convite de um dos seus professores para acompanhá-lo em uma viagem à Itália. Lá, no entanto, reencontra Stroop, com que passa a circular e a aproveitar o clima suave do Mediterrâneo e as obras de arte deslumbrantes de Florença e Roma, enquanto o príncipe Orsini fala ao delicado jovem sobre a arte do hedonismo. A vida de Vanya, então, começa a tomar outro rumo. Toda a história é dividida em três partes: na primeira, sua paixão pelo professor; em seguida, a viagem para a Europa Ocidental; e, por último, o retorno à Rússia.
A narrativa de Kuzmin passa longe da pornografia barata ou mesmo do erotismo simplório, gratuito. Pelo contrário, trata-se de alta literatura, de uma escrita refinada e sofisticada em que o leitor precisa de atenção redobrada para não perder o fio da meada. Acontece dessa forma porque o romance tem uma grande quantidade de personagens com nomes longos e bem característicos do russo, o que, para o leitor brasileiro, é uma dificuldade a mais para memorizá-los. Sem esquecer que os apelidos não são, quase sempre, derivados do nome e sobrenome originais. Vanya, por exemplo, foi batizado como Ivan Smúrov. Além disso, a trama é quebrada por pequenos blocos de textos, que parecem capítulos, em que se acompanha, de modo intercalado, a história da vida do rapaz e, em forma de flashback, dos seus pais.
Mesmo com a seriedade da obra e do modo sutil como o tema homossexualidade é tratado, mesmo como objeto central, Mikhail Kuzmin tem um estilo elegante e original. Porém, foi inevitável a reação de escândalo que seu livro provou. De imediato, fez com que seu nome atingisse instantaneamente notoriedade de um modo nada positivo, embora tenha feito dele um escritor muito popular. Sua obra levou comparações, pela crítica séria, por causa da aproximação temática com as obras contemporâneas de Oscar Wilde (1854-1900) e André Gide (1869-1951), dois escritores homossexuais notórios. “’Asas’ não é apenas uma obra esteticamente subversiva, é uma defesa franca da homossexualidade”, observou o escritor e crítico americano Justin Torres.
“’Asas’ foi uma obra literária que antecipou em dez anos alguns atrevimentos da Rússia revolucionária”, escreveu João Silvério Trevisan na apresentação do volume brasileiro. “No entanto, é curioso que esse romance só apareceu doze anos depois de uma produção semelhante, ocorrida longe dali, na então jovem república do Brasil, bem distante de qualquer ambiente revolucionário”, lembrou. Trevisan se referia ao romance naturalista “O Bom Crioulo”, do escritor cearense Adolfo Caminha (867-1897), publicado em 1895, cuja abordagem sexual é bem mais explícita, aliás. Trevisan viu a narrativa russa, ao comparar ambos, como indireta, reticente e “quase enrustida”, ao abordar o amor entre um adolescente e um homem mais velho, enquanto Caminha não poupa menções explícitas ao amor entre marinheiros.
Kuzmin era um caso raro de multiplicidade de talentos em que deixou trabalhos marcantes em todas as áreas em que se envolveu – música, poesia, prosa (escreveu romances e novelas), teatro etc. Nascido de uma família nobre de Yaroslavl, interior da Rússia, passou toda a vida em São Petersburgo, onde estudou humanidades na universidade que levava o mesmo nome do lugar. Seu interesse maior inicialmente, no entanto, foi a música. Teve a sorte de ser aluno do no Conservatório local do famoso compositor Nikolai Rímski-Kórssakov (1844-1908). Não se formou, entretanto. Mais tarde, explicou sua transição para a poesia: “É mais fácil e mais simples. A poesia cai pronta do céu, como o maná caiu aos israelitas no deserto”. Mas ele não desistiu da música; compôs a música para a famosa produção de Meyerhold, em 1906, da peça de Alexander Blok, Balaganchik (O Teatro de Feira). Suas canções também se tornaram populares entre a elite de São Petersburgo, onde eram cantadas acompanhadas ao piano nos salões. Gostava de dizer que suas composições “são apenas umas musicazinhas, mas têm o seu veneno.”
Na literatura, tornou-se um dos mais importantes nomes do simbolismo russo, apesar de ter se afastado depois do pensamento místico e religioso do movimento. Tanto que foi considerado o personagem-chave do Cão Vadio, ponto de encontro de intelectuais ligados a essa corrente. Suas primeiras obras publicadas datam de 1905, e atraíram a atenção de Valery Bryusov, que o convidou a contribuir na influente revista literária “Vesy”, porta-voz do centro dos simbolistas. Em outro momento, a partir de 1910, rompeu com a antiga escola e liderou o acmeísmo, corrente da primeira década do século XX que defendia uma linguagem mais clara, simples e harmoniosa e que teve entre seus representantes poetas como Anna Akhmátova, Nikolai Gumilióv e Óssip Mandelstam. Seu ensaio “Da Bela Clareza” é considerado o manifesto dessas ideias. No texto, Kuzmin exortou os escritores a serem “lógicos na concepção, na construção da obra, na sintaxe”.
A narrativa de “Asas” é fiel representação do acmeísmo, com sua arte precisa, clara e harmoniosa. Ao mesmo tempo, sua poesia, muitas vezes de poemas construídos a partir do preceito da livre versificação, é tida como seu legado mais importante, reunida em obras importantes em seu país, como “Siéti” (Redes, 1908), “Ossiénieoziora” (Lagos Outonais, 1912) e “Ekho” (1921). Em prosa, escreveu vários contos e novelas, dentre os quais o que lhe conferiu grande notoriedade: “Asas”. Para a crítica Roberta Reeder, “sua poesia é erudita e a gama de temas vai da Grécia Antiga e de Alexandria até a São Petersburgo moderna”. Seu último volume de poesia foi “A Truta Quebra o Gelo” (1929). O poeta e crítico contemporâneo Alexei Purin afirma que a tradição fortemente “trágica” e social da literatura russa se esgotou e precisa se reorientar ao longo do eixo pessoal e artístico exemplificado por Kuzmin e Vladimir Nabokov. Este, aliás, parodiou “Asas’ no seu conto “The Eye”, quando deu ao protagonista o nome de “Smurov”, enquanto “Vanya” é uma mocinha.
Nos últimos anos de vida, o escritor se dedicou à tradução de Shakespeare para o russo. Homossexual, Kuzmin sofreu muito com o preconceito e veio a falecer em Leningrado por causa de problemas crônicos de saúde nunca devidamente esclarecidos. Alguns de seus biógrafos afirmam que a proibição do homossexualismo na União Soviética marcou sua vida de modo definitivo e agravou seu estado de saúde. A tradução brasileira de seu livro, publicada pela Editora Z, em 2003, foi feita a partir do original russo por Elias Ribeiro de Castro, com comentários e notas explicativas de rodapé. Estudiosos identificaram no texto referências à literatura clássica e às artes em geral do período em se situa a história. Um grande e singular livro, para ser lido sem preconceito.
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