Em sua quase autobiografia “Many Years From Now” (Editora DBA, 2000), ditada ao amigo Barry Miles, Paul McCartney contou que muitas das composições mais famosas e cultuadas dos Beatles, criadas a partir do começo da segunda metade da década de 1960, ele as compôs com John Lennon influenciados por um único livro que tanto admiravam, liam e reliam: o delirante “Alice no País da Maravilhas”, do compatriota Lewis Carroll (1832-1898).
Não deixa de ser curioso e revelador porque a crítica, os historiadores e biógrafos dizem até hoje que foram as drogas as suas maiores influências. Mais ou menos nessa época, quando invadia os Estados Unidos com seu grupo e ganhava o mundo, Lennon lançava dois livros escritos e ilustrados por ele: “Lennon On His Own Write” (1964) e “A Spaniard In The Worlks” (1965). Ambos reúnem, com certa uniformidade de estilo, pequenas histórias, contos, anedotas, poemas, bilhetes e outros experimentos difíceis de serem definidos, em uma espécie de mistura fina de boa parte das linguagens possíveis de se usar, principalmente em prosa.
Lennon se mostra ousado ao juntar palavras, sons, onomatopéias, associação de imagens com letras, palavras e textos. O resultado pode ser resumido, segundo as próprias palavras que criou. Como na expressão “Paspelham passaligeiros e passeuntes ambos e ambos“. Ou esta: “Eram uma vilinha e borboatos indescensos se esparramilhavam entre os desabitantos que moravam lá”. Delirantes, surrealistas, bizarros, sinistros? Sim, as curtas histórias do músico eram isso e muito mais. Apesar da clara influência do conhecido universo de Carroll, seus biógrafos, no entanto, viram nas duas obras a presença marcante das drogas. Segundo eles, esses dois anos em que os livros saíram também foram fundamentais na vida do artista. Na época do primeiro, ele começou a fumar maconha. No outro, entregou-se aos delírios alucinados do ácido lisérgico, o LSD. Assim, foi por causa desses estimulantes que a sua mente se ampliou tanto que as palavras comuns já não lhe serviam para escrever seus textos. E, por isso, ele teria começado a embaralhá-las em trocadilhos e neologismos – “inenacreditável”, “desanimaversário”, “sossombras”, “canabisbaixo” etc –, a fazer imagens inalcançáveis àqueles considerados caretas.
O crítico brasileiro Joaquim Ferreira dos Santos, do jornal O Globo, chegou a sugerir, duas décadas depois dos dois lançamentos que quem estivesse interessado em acompanhar os “alienantes passeios pelos buracos de queijo que, em 1965 e 1966 (sic), a droga desenhava na cabeça de Lennon”, deveria mesmo ouvir o LP dos Beatles lançado naquele ano, o magistral “Rubber Soul”. Citou, em especial, a faixa “Nowhere Man”, sobre um personagem idiota que bem poderia estar em uma das “desatas” histórias dos dois livros. Ele não gostou nem um pouco dos dois volumes, quando foram reunidos no Brasil em uma só edição, com o título “Atrapalho no Trabalho”, em edição bilingue, lançado pela Editora Brasiliense, em 1985, graças ao empenho pessoal do poeta, escritor e ensaísta curitibano Paulo Leminski (1944-1989), que fez uma mistura de tradução e adaptação para o português, além de um prefácio.
É uma incompreensão ou um equívoco considerar os textos de Lennon apenas mais uma viagem de ácido do artista do que qualquer outra coisa. O mais intelectual membro do famoso grupo musical de Liverpool nunca escondeu suas pretensões literárias e é inegável a aproximação de seus livros com o País das Maravilhas, o famoso livro infantil. Só que em uma visão claramente adulta e bizarra, que flerta muito com os gibis de terror da década de 1950 que o autor deve ter lido na infância. Ao que consta, se os Beatles tinham descoberto as drogas alucinógenas, Lennon e McCartney ainda viajavam sim o tempo todo na companhia de Alice, dentro de suas cabeças e imaginações. No lançamento dos livros na Inglaterra, não por acaso, os críticos compararam o exercício de escrita de Lennon aos experimentos literários de James Joyce e Lewis Carroll. “Tem solecismos e imaginética só encontráveis em Edward Lear, com possibilidades líricas jamais exploradas”, escreveu o “The Guardian”.
Não é preciso muito esforço para perceber que essas histórias amargas, de humor negro e morbidez, foram influenciadas também por elementos da cultura pop e resultaram de um autor consciente do que escrevia e ambicioso quanto a seu resultado. Ao mesmo tempo, descompromissado com regras de construção literária, Lennon começava a acertar publicamente as contas com seu passado de menino abandonado pela mãe e pelo pai, obrigado a viver com Tia Mimi. Esta, aliás, citada por um emocionado Paul MacCartney, no prefácio que escreveu após a morte do antigo parceiro. Em uma página apenas, ele carinhosamente lembra como os dois se conheceram. “Tia Mimi, que já estava cuidando dele, já que ele estava tão tocado, costumava me contar como ele era mais esperto do que dava a entender, e coisas assim. Ele tinha feito um poema para uma revista da escolha sobre um eremita”.
Segundo Leminski, os textos do Beatle são estranhas miscelâneas de natureza variada, que chama de “flash-contos, esboços de peças, poemas non-sense”, sempre acompanhados de desenhos. “Todos marcados por extrema criatividade da linguagem, conduzida ao absurdo por um humor sarcástico e cínico”, ressalta o poeta e tradutor curitibano. Nesse aspecto, o conto “Sem Moscas em Marcos” é um bom exemplo. Muito antes de Roman Polanski escrever e dirigir o filme “Repulsa ao Sexo”, com Catherine Deneuve, em 1965, ele narrou a história do sujeito que, em um universo delirante e no momento de loucura, incomodado por supostas moscas, imaginárias, e o suposto aumento de peso, que tomam conta dele, decepa a cabeça da esposa, pelo fato de culpa-la por sua obedisidade. Duas ou três semanas depois, acordou para ver que não havia moscas nele. O mesmo não podia dizer da cabeça da esposa, infestada de insetos. Ele, então, decide levar a cabeça e devolvê-la à sua sogra. Mas a senhora Sabetudo não quis acolhê-la e disse que não admitiria tantas moscas em sua casa. Construída por meio principalmente de neologismos, esse conto bem poderia ser uma história de terror de puro humor negro.
A história “A Festa de Randolfo” reafirma o gosto do escritor Lennon pelo absurdo. Na trama, todos os amigos aparecem para comemorar o aniversário do Randolfo, mas nada de presentes. Preferem assassiná-los aos gritos de “pelo menos ele não morreu sozinho”! Para Leminski, os textos ocupam um lugar especial no quadro de criação textual da segunda metade do século XX, por causa da linguagem. Além disso, remetem a James Joyce, o mais radical dos prosadores do século, na sua opinião. “Um Atrapalho no Trabalho” é ilustrado por desenhos do próprio Lennon, que antes de chegar aos Fabs Four esteve em uma escola de artes em Liverpool. Tinha jeito para a coisa. São cartuns de traço original, despojado, reveleando uma galeria de aleijões, tipos com muitos ou nenhum braço, cegos, solitários, sempre um jeito maligno no canto da boca. Coisa de talento, mas de astral lá embaixo.
O Lennon escritor sem dúvida estava conectado com a linguagem visual de seu tempo, quando a televisão se massificava por todo o planeta e o colorido psicodélico da contracultura tomava as ruas de Londres e Nova York aparecem em suas criativas experiências literárias que poderiam ser chamadas de prosa-pop ou prosa da era da TV, do videoteipe e dos clipes, que o Beatles acabaram por inventar – embora também aparecessem em programas de auditório na telinha. “O Beatle faz gato e sapato das receitas de todos os gêneros, excomunga os lugares-comuns. Rir é o melhor remédio, achar graça a única saída”, observou Leminski.
Esses foram os únicos livros de Lennon e ninguém nunca soube exatamente por quê ele não deu continuidade a seu talento de escritor. Talvez pela fria recepção da crítica, que pode tê-lo desistimulou, certamente. Ao que parece, essa decepção fez com que fossem esquecidos. Tanto que jamais lhe perguntaram o motivo de ele ter parado de escrever, pois poderia ser compreendido como uma cobrança de novas obras. Não seria o caso, segundo Joaquim Ferreira dos Santos. “O livrinho soa como certas canções que Lennon escreveu quando os Beatles ficaram cultos, idolatrados como novos Beethovens e tudo lhes era permitido”. Um pouco antes de morrer, em 1980, Lennon criticou seu próprio trabalho e fez coro a seus opositores. Disse que “I’m The Walrus”, por exemplo, tinha um jeito pretensioso de que queria dizer muita coisa. “Mas nada. Era só enrolação!” Mas que nada se deve dizer agora.
Meio século depois, os textos de “Um Atrapalho no Trabalho” não devem mais ser vistos apenas como mera curiosidade excêntrica de um astro pop, semelhante à que se tinha de um Rolls Royce psicodélico que Lennon pintou e encheu de vidros escuros para passear incógnito pelas ruas de Londres. Ou uma mera curtição da loucura pop dos anos de 1960, como se escreveu. De uma clareza impressionante, melhorou com o tempo e merece a reverência mesmo tardia de ser uma obra-prima.
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