[97 de 100] A vida pode ser mais surreal do que se imagina, segundo André Breton

coluna97Quatro anos tinham se passado desde o lançamento do seu livro “Manifesto do Surrealismo”, quando o escritor, poeta e teórico francês André Breton (1896-1966) publicou, em 1928, o seminal “Nadja”, descrito como resultado imediato dos princípios que deram sustentação ao movimento artístico do Surrealismo, um dos mais importantes do século XX. Apontada como o melhor romance escrito dessa corrente, a obra definiu a atitude dos surrealistas do abstrato e idealizado em direção à vida cotidiana. O livro, no entanto, acabaria por superar de modo inquestionável o que se poderia chamar de limitações circunstanciais daquela escola e sobrevive desde seu aparecimento como um marco de uma época. Considerado também um dos romances mais belos, instigantes e poeticamente inspirados que vieram à luz do século XX, foi a narrativa mais importante de Breton – faz parte de sua trilogia ficcional “Les Vases Communicants” (1932) e “L’Amour Fou” (1937). 

Para compreender sua importância é preciso contextualizar seu autor. Breton foi criado pela avó materna e começou o curso secundário em 1906, no Collège Chaptal. Em 1913, aos 17 anos, ingressou no curso de medicina. Mas queria saber mesmo era de poesia e prosa. No ano seguinte, publicou três poemas na revista “La Phalange”. Ao lado de Louis Aragon (1897-1982) e Philippe Soupault (1897-1990), fundou a revista “Littérature”, em 1919. Dois anos depois, casou-se com Simone Kahn, enquanto esboçava o “Manifesto do Surrealismo”, que fez dele um nome importante no meio artístico francês. Marco desse período, “A Revolução Surrealista”, editado por ele, reuniu artistas e intelectuais em torno de suas ideias. Até que veio a inspiração para escrever seu primeiro romance, quando conheceu, em 1926, uma paciente psiquiátrica chamada Nadya. O trocadilho do título sintetizaria as principais obsessões de Breton, segundo a crítica: o acaso, o amor, as relações entre a vida e a poesia. A necessidade de participação política o levou a ingressar no Partido Comunista, em 1927, do qual foi expulso seis anos depois, por causa de divergências. Em 1933, conheceu Jaqueline Lamba, com quem teria uma filha, Aube. No fim da década de 1930, o surrealismo começou a ganhar força internacionalmente, mas, por causa da guerra, Breton trocou a França pelos EUA, em 1941, e retornou em 1946, para dar continuidade ao movimento surrealista. 

Em “Nadja”, realidade e fantasia se misturam em uma experiência literária cuja preocupação é ressaltar as características do movimento de vanguarda do qual Breton foi um dos protagonistas, ao lado de Luis Buñuel (1900-1983), Pablo Picasso (1881-1973) e Salvador Dali (1904-1989), entre outros. A partir de um ambiente frequentado por prostitutas e cartomantes, o narrador – que se chama André – relata sua convivência efêmera e tumultuada com uma garota, em meio ao labirinto urbano e underground das noites parisienses, em um tempo de intensa efervescência cultural na chamada cidade das luzes. Como diz a apresentação de uma das edições brasileiras, lançada pela Imago, a atmosfera onírica registra os fragmentos do dia-a-dia em imagens produzidas a partir de destroços da realidade imediata, que buscam a correspondência dos objetos cotidianos com o mundo interior do narrador. Segundo críticos e estudiosos da obra, o autor quer mostrar que Nadja seria a encarnação contemporânea do enigma e do mito, portanto, representaria o princípio de liberdade em forma feminina e uma porta para além da banalidade do cotidiano. 

O inquietante romance de Breton começa com uma pergunta: “Quem sou eu?” O escritor revelaria depois que a trama se baseou nas intensas relações – ou interações? – que ele manteve com uma garota ao longo de dez dias. Daí se concluir que se trata de um texto com forte influência autobiográfica, embora seja assumidamente um texto ficcional. Depois de uma série de observações e indagações, André passa a escrever uma espécie de diário, que vai dos dias 4 a 12 de outubro de 1926. “Sempre desejei incrivelmente encontrar à noite, num bosque, uma mulher bela e nua, ou antes, como tal desejo uma vez expresso perde seu significado, lamento não a haver encontrado”. Não acontece dessa forma, mas ele descobre Nadja. “Muito elegante, de vestido vermelho e preto, um chapéu que lhe assenta muito bem, e que ele tira, mostrando os cabelos cor de aveia que renunciaram à sua incrível desordem anterior; traja meias de seda e sapato de bom gosto”. 

A moça hesita engatar um bom papo. Intimidada, agarra-se aos livros que André lhe trouxe: “Os Passos Perdidos” e “Manifesto do Surrealismo”, escrito pelo próprio Breton. Os dois, então, entram em uma discussão literária. O rapaz se dá conta que precisa vê-la todos os dias, até que um romance entre eles tem início, a partir de pequenas carícias. A história gira em torno de sua busca por Nadja pelas ruas de Paris. Durante a trama, os dois se encontram por acaso algumas vezes e se desencontram em outras. E veio a paixão, que não demorou a se romper. “Revi Nadja muitas vezes, seu pensamento aclarou-se para mim, sua expressão ganhou em leveza, em originalidade, em profundidade. É possível que igualmente que o desastre irreparável que arrastou a parte mais humanamente definida dela mesma, desastre de que eu tivera noção naquele dia, me tivesse afastado pouco a pouco de Nadja”. Em uma época que os debates intelectuais faziam parte do cotidiano da classe média e movimentos artísticos surgiam às pencas, o que realmente o fascina na amada é a sua singular e ousada visão do mundo, que leva muitas vezes a uma discussão sobre o trabalho de um número de artistas surrealistas, da qual o próprio não escapa.  

Em suas colocações nada convencionais, Nadja conta detalhes de sua vida o que faz com que o narrador chegue a conclusão de que ele não pode continuar seu relacionamento – em determinado momento, mais adiante, descobre que sua cobiça vive em um hospital psiquiátrico. Mas não é a loucura dela que os separa, mas o fato de ser alguém comum. Antes, ele pensava haver algo essencialmente “misterioso, improvável, original, desconcertante” sobre ela; o que reforça a noção de que a sua proximidade serve apenas para lembrar André da inacessibilidade  mental e existencial de Nadja. Com o passado de Nadja impregnado em sua memória e consciência, o narrador é despertado para a impenetrabilidade da realidade e percebe um resíduo particularmente fantasmagórico que espreita sob seu fino véu, como observou um de seus críticos. Assim, ele poderia melhor colocar em prática a sua teoria do surrealismo, baseada na devaneio da experiência da realidade em si mesma. André se revela obcecado pela mulher que conhece, após um encontro casual enquanto caminhava pela rua e com quem puxa conversa. 

O modelo de narrativa de Breton é caótico, descompromissado, com intercalações constantes de observações pessoais e de pessoas, além de citação de pontos turísticos e anotações sobre a vida cultural parisiense. “Não tenho a intenção de narrar, à margem do relato que vou empreender, senão os episódios marcantes de minha vida ‘tal como a posso conceber fora do seu plano orgânico’, ou seja, na própria medida em que ela está confiada ao acaso, do mais ínfimo ao mais alto grau”, escreve. Tema de ensaios importantes de Walter Benjamin (1892-1940) e Maurice Blanchot (1907-2003), ao mesmo tempo amparado em uma estrutura de construção não-linear, o romance é temperado por referências de outros autores surrealistas de Paris, como Aragon, e por 44 fotografias da vida mundana da cidade. O narrador não se intimida em fazer considerações sobre uma série de princípios surrealistas como preâmbulo no primeiro terço do livro, até entrar na história que gostaria de contar. O autor escreveu uma curta e intensa história de amor e obsessão, marcante para quem a lê. Nadja é assim chamada, explica ele, “porque em russo é o começo da palavra esperança, e porque é apenas o começo”, mas seu nome também pode evocar o espanhol “Nadie”, que significa “ninguém” ou “nada”. 

A personagem Nadja costuma ser descrita como um estado de espírito, um sentimento sobre a realidade, uma espécie de visão, e o leitor às vezes se pergunta se ela existe. Embora fruto da imaginação de Breton e traga uma pegada intimista e subjetiva, segundo ele próprio e seus contemporâneos, a intenção é dar o tom de realismo à história. A própria citação do “Manifesto do Surrealismo” brinca com essa ideia – esse texto apontou para o mundo um novo modo de encarar a arte. Seguido do Dadaísmo (movimento que propunha a oposição por qualquer tipo de equilíbrio), o surrealismo impunha o chamado automatismo psíquico, “estado puro, mediante o qual se propunha transmitir verbalmente, por escrito, ou por qualquer outro meio o funcionamento do pensamento; ditado do pensamento, suspenso qualquer controle exercido pela razão, alheio a qualquer preocupação estética ou moral”, como definiu Breton.


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