[99 de 100] A solidão do homem diante da opressão da justiça, segundo Franz Kafka

coluna99Em um leilão realizado no ano de 1998, o manuscrito do romance “O Processo”, do escritor tcheco Franz Kafka (1883-1924), foi adquirido por cerca de 1,5 milhão de euros, pelo Ministério da Cultura da Alemanha. A peça ficaria, desde então, depositada na Biblioteca de Marbach, em Neckar, no estado de Baden-Württemberg. A fortuna paga, comum a pinturas e objetos decorativos, sem dúvida representa a importância que o livro tem, quase cem anos depois de sua criação, em 1915. Segundo Max Brod, amigo muito próximo de Kafka, o volume permaneceu inalterado desde então, no momento em que o autor lhe entregou os escritos, em 1920. Após a morte de Kafka, em 1924, Brod o editou por considerá-lo um romance coerente, e o publicou no ano seguinte. A partir daí, o volume se tornou, certamente, a narrativa mais influente, discutida, estudada e inspiradora do século XX. E objeto de discussão principalmente em faculdades de direito, pelo seu caráter questionador do papel das leis, sua aplicação pelo Estado, os empecilhos que a burocracia impõe à vida das pessoas e da falta de justiça. 

Tudo começa na manhã em que o jovem e pacato Josef K., funcionário de um banco, completa 30 anos de idade e é visitado, no modesto quarto de pensão onde mora, por dois homens cuja missão é informá-lo de que há um processo judicial tramitando contra ele. Sem entender o que está acontecendo, o rapaz pede mais explicações, mas a dupla se recusa a revelar a natureza da acusação. Adianta apenas que ele poderá responder ao inquérito em liberdade, desde que se apresente para ser interrogado periódica e voluntariamente ao tribunal. “Alguém devia ter caluniado Joseph. K, pois sem que ele tivesse feito qualquer mal foi detido certa manhã”, narra o romance. Quem será esse alguém? É o que tenta saber. E tem início contra ele uma longa e incompreensível ação por um crime não revelado. Sem saber que jamais terá acesso ao conteúdo da acusação, o protagonista percorre desesperadamente as vielas e becos da burocracia estatal, obedece pacientemente a ritos inexplicáveis, comparece a tribunais estapafúrdios, submete-se a ordens desconexas e se vê de tal modo aprisionado em uma situação absurda e sem qualquer lógica, cuja experiência mais parece um pesadelo. 

Com essa desconcertante trama, Kafka dá um nó na cabeça do leitor porque narra a história sem fazer explanações longas de sentido filosófico. Deixa transparecer nas entrelinhas, no entanto, certo propósito humanista e libertário, além de um teor claramente subversivo contra a estrutura do poder e da justiça. Cada página traz passagens que demonstram a ideia de que a lei não se abrirá para o honesto homem. Portanto, cristaliza nele a noção de que a justiça não é para todos. “K. comprovou que o caminho era mais breve do que teria imaginado. Exatamente em frente do quarto partiu uma estreita escada de madeira que provavelmente se chegaria à água furtada e que, formando uma curva não permitia ver o lugar onde terminava.” Em outro trecho, mais uma crítica ao sistema Judiciário: “Talvez nenhum de nós tenha o coração duro; talvez todos nós apreciemos socorrer os acusados; apenas que como funcionários da justiça muito facilmente assumimos a aparência de ter o coração duro e de não querer ajudar ninguém. Aí está algo que lamento muito.” Kafka quer mostrar de que modo a sociedade vê a justiça – como algo severo, protelatório, drástico e não tem como escopo a intenção real de ajudar as partes litigantes. Assim, o bancário é obrigado a ir a audiências e enfrentar filas de cartórios, apenas porque quer saber do que crime é acusado e se defender. 

O livro tem muito da experiência pessoal do autor. Kafka foi um advogado que se ocupou por vários anos de um ofício burocrático em uma companhia de seguros. Sem qualquer discurso panfletário, bem a seu modo, ele dá um caráter humanista à solidão do homem comum diante da sua impotência em situações cotidianas que colocam seus protagonistas em condições absurdas de abusos de poder e de injustiças. Por causa de alto nível de complexidade temática, apesar da fluência, “O Processo” é um dos mais instigantes textos a desafiar intelectuais e estudiosos, inclusive na área jurídica, e a fazer suas interpretações sobre a história de um homem que se vê à beira de perder o juízo diante da burocracia do judiciário. Ele tem convicção de que nada fez que justifique o inferno em que sua vida foi transformada. Com a desvantagem de não ser um ser abastado, mas um sujeito modesto, um tipo comum, que vive do rendimento de seu trabalho remunerado. 

O que se pode dizer de “O Processo” é que Kafka construiu uma narrativa carregada de certa atmosfera de desorientação na qual o protagonista está imerso. Tal clima se deve à infindável série de surpresas aterrorizantes, quase surreais, geradas por um sistema labiríntico, inacessível, mas em perfeita conformidade com os parâmetros reais da sociedade moderna, com seu esquema de controlar o cidadão por meio da opressão silenciosa, tortuosa, porém eficiente. Um contexto que dá um tom de desespero a um homem que se vê na condição de incapaz de se defender. Como consequência, instala-se uma confusão na mente de Josef K., assim como em todos os ambientes reais nos quais ele está inserido, situação essa que não poupa nem mesmo o leitor. Ao contrário, envolve-o em uma sensação incômoda e angustiante, marca inconfundível de toda a obra do escritor tcheco. Segundo a crítica, existe aí a ambiguidade onírica do peculiar de seu universo e as situações de absurdo existencial chegam a parâmetros insuspeitados e insuportáveis. Para isso, a ação se desenvolve em um crescente e claustrofóbico clima movido a fatos corriqueiros, que levam à irrealidade que beira a loucura. 

A ponto de, quando declara sua inocência, Joseph K. é perguntado: “inocente de quê?”. Talvez o processo contra ele tenha sido instaurado pela incapacidade de confessar sua culpa, e, por conseguinte, sua humanidade. Assim, o tema da não-humanidade é apontado como o ponto que torna o livro atual, de modo a provocar ainda hoje questionamentos dos costumes e crenças arbitrários da vida, que podem parecer, sob certo aspecto, tão bizarros quanto os acontecimentos da vida de Joseph K. Estudiosos da obra acreditam que a figura de Josef K. funciona como o paradigma do perseguido que desconhece as causas reais de sua perseguição, obrigado a se ater apenas às elucidações alegóricas e falaciosas vindas de variadas fontes. Embora Kafka tenha retratado um autoritarismo da Justiça que se vê com o poder nas mãos para condenar alguém, sem oferecer meios de defesa, ou ao menos conhecimento das razões da punição, podemos levar a figura de Josef K., bem como de seus acusadores, para vários campos da vida humana. Como trabalho, religião, na escola etc. 

Como ressalta a apresentação de uma das edições brasileiras, o autor criou um enredo em espiral: a luta de Joseph K. para descobrir do que é acusado e por quem e com que fundamento jurídico. Um esquema labiríntico que se desenvolve em direção ao infinito, como se fosse empurrado por um mecanismo sinistro. As forças que o atormentam não podem ser vencidas porque não têm rostos ou nomes e se alimentam do anonimato e da invisibilidade, e só são percebidas pelos anseios e dramas que geram. “Alguém certamente havia caluniado Joseph K., pois em uma manhã ele foi detido sem ter feito mal algum”, diz a frase que abre a narrativa. O mais incrível é que “O Processo” não passa de um livro inacabado, apesar do reconhecimento de ser um dos maiores romances do século XX. Kafka começou a escrevê-lo em 14 de agosto de 1914, pouco antes do início da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), mas abandonou definitivamente o manuscrito em 17 de janeiro de 1915. Significa que a angústia de seu principal personagem jamais se extinguirá. 

No posfácio de sua tradução direto do original, Modesto Carone destaca que temas como processo, lei, aparelho judiciário e burocrático são motivos que atravessam toda a obra de Kafka. “Ele soube tratá-los com precisão técnica e terminológica, não só porque era formado em direito, mas também porque atuou pessoalmente em numerosos processos envolvendo a companhia semi-estatal de seguros contra acidentes do trabalho, da qual foi funcionário exemplar durante anos”. Não só por isso se tem um romance realista, mas pelo fato de o drama do protagonista ter sido o mesmo de milhões de pessoas ao longo de séculos junto à justiça, o que difundiu o sentimento de que a razão pode muito pouco contra a banalidade da violência irracional. Como diz um de seus editores brasileiros, para além das analogias mais imediatas, entretanto, essa narrativa confronta o leitor com o desmantelamento da ordem visível, ao mesmo tempo em que o obriga a perder todo traço de inocência em relação à linguagem.


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