Fazer piadas destrutivas sobre si mesmo sempre teve um sentido de profunda ironia para o escritor e cronista capixaba José Carlos Oliveira (1934-1986). Em entrevista ao semanário carioca “Pasquim”, no final da década de 1970, quando morava no havia quase três décadas, assumiu-se entre risos e algum sarcasmo como a promessa não cumprida da literatura brasileira de seu tempo. No seu relato quase autobiográfico sobre a boemia carioca “Um Novo Animal na Floresta”, livro publicado pela Codecri, em 1981, seu alterego Carlinhos de Oliveira apareceu auto-citado como “pústula humano”, “estilista à procura de um tema”, “Rubem Braga dos Pobres” e “Faulkner de Jucutuquara”. Era ele o cronista do “Jornal do Brasil” que ficava bebendo por dias a fio, “com cara de inteligente” e “ar soberbo de um Balzac que já tivesse publicado todos os livros”, enquanto “os verdadeiros intelectuais estavam escondidos da polícia e a ditadura censurava, prendia e arrebentava.”
Oliveira ia à forra, ainda nesse texto, ao ressaltar que o mesmo Carlinhos traçava as mais belas mulheres da society carioca. “O mar bramindo e você brahmando”, acusava-lhe um de seus próprios personagens, ao falar de sua vida boêmia e despolitizada. Jornalista famoso e colunista respeitado, o Carlinhos de Oliveira da vida real, o cronista que teria inventado o mitológico bairro de Ipanema, ouvia insultos semelhantes dos bêbados com quem convivia todas as noites nos bares da cidade, a maioria formada por intelectuais e artistas. Orgulhoso, era ferido com as provocações, cobrado por não se engajar diretamente contra o regime militar (1964-1985) e, pior, por rejeitar a verdade única e o otimismo revolucionário que pretendia derrubar a ditadura. Apesar de comungar com os ideais do socialismo, ele condenava a adesão automática e complacente às teses da esquerda e criticava a polarização política durante a ditadura, ao afirmar que os dois lados defendiam regimes autoritários. Pegou mal para ele, em uma época em que quem não fosse da esquerda deveria ao menos se mostrar simpatizante.
Não era verdade, entretanto, que José Carlos de Oliveira não tivesse tentado escrever uma grande obra. Muito menos que não tenha conseguido isso. Morto prematuramente, aos 52 anos, ele deixou oito títulos publicados, metade deles romances emblemáticos dos anos de 1960 e 1970 – apesar de três estarem esquecidos e jamais tenham sido reeditados – e, a outra, das crônicas que publicou, principalmente no “Jornal do Brasil” e na revista “Manchete”. O mais famoso deles, o romance policial “Terror e Êxtase” (Codecri, 1977), vendeu expressivos 20 mil exemplares, teve quatro edições e chocou a alta sociedade carioca, ao desglamourizar por completo o mito da Cidade Maravilhosa e dos bairros chiques. O Rio dele foi retratado como uma cidade decadente, onde traficantes afundavam em drogas pesadas a juventude burguesa que um dia deveria comandar o país.
Oliveira não criara um mundo artificial e forçado. Apenas soube captar o clima de insegurança que dominava o noticiário, com assassinatos passionais famosos motivados por drogas, como o de Claudia Lessin Rodrigues, 21 anos, ocorrido em 1977, na casa de Michel Frank, milionário suíço-brasileiro supostamente envolvido com o tráfico de drogas. Até então, muitos relatos de crimes que chocaram o país foram transformadas em livros e tiveram em José Louzeiro e Valério Meinel os principais autores. São deles obras com os personagens trágicos Aracelli, Carlinhos e o assaltante Lúcio Flávio. Até que Oliveira lançou o primeiro romance que se tornaria um retrato real e trágico do Rio, que muitos, na época, consideram exagerado, mas que se mostrou premonitório. O livro surgiu duas décadas antes do lançamento de “Cidade de Deus”, de Paulo Lins.
Na trama, mundos distintos e aparentemente antagônicos – os miseráveis dos morros cariocas e os chiques da zona sul endinheirada – se misturam numa história regada a sangue e drogas. Os protagonistas da história são Heleninha e um criminoso amoral e cruel chamado 1001. Ela, filhinha de papai de Ipanema, com apenas 17 anos de idade, mas já viciada em drogas há muito tempo, com passagens por vários sanatórios para desintoxicação. Ele, ladrão e assassino temido por quem conhece a bandidagem, criado na Baixada Fluminense, armado até os dentes e auxiliado por três criminosos, Tatuzinho, Boca Torta e Minhoquinha. Por causa dos dois dentes que faltam no meio da arcada superior, ganhou o apelido de 1001. À medida que aterroriza a Zona Sul, mais aumenta a paixão de Heleninha por ele. Os dois, por fim, sequestram um amigo rico da mocinha, Betinho. Ela, no entanto, não imagina que rumo aquela situação pode tomar e, no cativeiro, tenta proteger o amigo. Acaba refém. “Você não sabe que isso aqui é uma guerra? Precisa saber quem é quem, se não tu fica mais perdido que cego em tiroteio cruzado”, diz um dos bandidos.
José Carlos Oliveira mostra um submundo em formação, onde ainda havia alguma divisão clara entre mocinhos e bandidos e as relações eram marcadas por certa ingenuidade. “Então, a gente combinou assim: boina é da lei; touca de meia de mulher na cabeça sem nada por cima, podes crer que é bandido.” É a idosa Adelina, moradora de Copacabana e uma curiosa visão da vida e de Deus, quem narra o primeiro capítulo da história. Depois de uma série de observações sobre a vida, ela descreve a sensação de morrer alvejada com um tiro na cabeça, outro no peito e um no braço, no momento em que isso acontece. Depois, Heleninha assume a narrativa, cujo ponto de partida é o primeiro encontro dela com o marginal que ganha seu coração. Com frases curtas que quase nunca passam de uma linha, e mensagens telegráficas, o romancista impõe um ritmo alucinado. “Depois me envergonho de mesmo, da minha impiedade. Mas que diabo, Deus também não faz assim conosco?”, observa Adelina, instantes antes de ser morta.
Escritor formado nas redações de jornais, Oliveira explora, com domínio de bom contador de histórias, a relação entre Heleninha e 1001, que ele coloca o tempo todo com sentimentos dúbios de ambas as partes. A jovem rica se divide entre a atração irresistível e o medo, que também a excita. Do outro lado, o criminoso sabe do jogo perigoso em que se meteu. A jovem riquinha pode ser a sua perdição e, por isso, ameaça matá-la diversas vezes, mas não consegue ficar longe dela. Nas entrelinhas, o autor faz cuidadoso raio x das relações conflitantes entre a classe média e a periferia da cidade, que encontram no tráfico de drogas seu denominador comum e, obviamente, combustível das desgraças que resultam suas vidas. Dentre eles, o termômetro da ressaca que era viver num país desiludido com a política e a economia da ditadura e do fim dos sonhos da contracultura e da revolução sexual que não se realizaram. Um exemplo disso é Leninha, menina da “patota barra pesada do Baixo Leblon”, que encara uma vida vazia e sem perspectivas, movida a toneladas de pó e noitadas de farras. Contraditoriamente, odeia a burguesia da qual faz parte e quer enfiar o pé na jaca, sem saber direito como.
Para os amigos, Carlinhos de Oliveira justificava que todas as suas crônicas (mais de 3 mil, publicadas entre 1961 e 1983 no “Jornal do Brasil”), se reunidas em um só volume, daria um romance “absolutamente impressionante”, com um painel de sua geração como ninguém jamais escrevera. Não considerou que esse diagnóstico aparecia intenso em “Terror e Êxtase”. O reconhecimento pelo livro, que tanto esperava, porém, não veio. Acreditava-se que o esquecimento de sua obra ocorreria por sua falta de talento como cronista e escritor ou pelo fato de seus textos serem produtos de seu tempo, sem qualquer importância hoje, quase três décadas depois de sua morte. Não aconteceu isso. Ao contrário. Sua ficção ainda pulsante confirma o talento de um escritor moderno, de estilo pessoal marcado pelo sarcasmo, com frases densas e dramatizações dos fatos, mas sem perder o lirismo.
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