A necessidade de sobreviver faz o homem se submeter a regras de convívio social e a frear seus mais básicos e bárbaros instintos. É preciso lutar contra isso, o que não é sempre possível. Patologias à parte, que geram psicopatas, a dissimulação do homem cordial foi tema de um livro interessante: “Entre os Vândalos”, do inglês David Buford, em que ele defende a ideia de que o mais gentil dos humanos pode fraquejar quando está no meio de pessoas que praticam arruaças e agressões em grande escala sem qualquer motivo a não ser o ódio – no caso, os torcedores chamados de hooligans. Um romance, no entanto, dimensiona de modo mais impactante essa teoria: “Senhor das Moscas”, do escritor inglês e Prêmio Nobel William Golding (1911-1983), lançado há 60 anos, em 1954, depois de ser recusado por 21 editoras. O título do livro é uma tradução literal do nome hebraico “Belzebu”, sinônimo para o Diabo.
A história de Golding é uma parábola ou alegoria do mundo real, feita para provar que o ser humano pode ser sombrio em qualquer idade, a depender do contexto. Apenas lhe dê condições e uma situação limite para que seu verdadeiro caráter destrutivo se manifeste. Nessa distopia juvenil, o autor desenvolve uma visão pessimista da humanidade, com as marcas e os resquícios do nazismo, a presença do stalinismo e do horror atômico da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Golding escreveu propositadamente um dos mais aterradores textos sobre a alma humana, ao contar a experiência de trinta meninos adolescentes que, durante a Segunda Guerra Mundial sobrevivem a um acidente aéreo – todos os adultos morreram – em uma distante ilha do Oceano Pacífico e são forçados a se organizar em sociedade. De uma hora para outra, tentam construir uma civilização aos moldes daquela de onde vieram, mas a experiência acaba em sangue e terror, segundo definição do próprio autor.
No primeiro momento, os meninos se juntam em um grande grupo e, em assembléia, escolhem um líder. Embora inexperientes, foram educados para serem homens bons e conhecem bem as regras básicas que precisam seguir de respeitar uns aos outros. No começo, uma relação assim parece possível. Aos poucos, porém, enquanto esperam um resgate, começa a divisão por causa das necessidades básicas que precisam suprir, limitadas aos poucos recursos naturais da ilha e em suas próprias fantasias. Surgem subgrupos entre aqueles com mais afinidades, com seus próprios líderes. Ralph, um deles, dedica-se a construir refúgios e a cuidar da colheita. Jack assume a turma da caça. Sem a supervisão de adultos, mesmo com noções de hierarquia e ordem adquiridas dos pais, essas tarefas e as ambições pessoais geram conflitos de interesses e discórdias cada vez mais hostis. O bando vai, aos poucos, cedendo aos seus instintos e se aproximando cada vez mais da violência e da morte. A disputa pelo poder é um dos estopins da desordem. E o paraíso do “bom selvagem” acaba em completa carnificina contra os mais fracos.
Aos poucos — e por seus próprios desígnios —, esses garotos aparentemente inocentes transformam a ilha em uma visceral disputa pelo poder. A ponto de, em sua selvageria, rasgar a fina superfície da civilidade que os mantinham como uma lembrança remota da vida em sociedade. “Senhor das Moscas” conduz o leitor por um caminho sombrio para mostrar que na luta pela sobrevivência e pelo poder as pessoas são capazes de romper com todas as convenções que tornam as civilizações possíveis. E se entregam à barbárie. Golding discute como a disciplina funciona em uma sociedade e explora outros temas voltados para o lado obscuro da sociedade e a própria natureza humana. Ele o faz por meio de uma fina ironia.
Alguns estudiosos costumam interpretar o livro como um tratado de filosofia moral, uma vez que um dos principais temas é a natureza do Mal. O cenário da ilha, um paraíso com toda a comida e a água necessárias, foi visto como uma metáfora para o Jardim do Éden, com direito à aparição de uma serpente, do mesmo modo que o mal surge no livro de “Gênesis”, do “Antigo Testamento”. Isto pode ser claramente visto na conversa em que Simon mantém com o crânio do porco, que se refere a si mesmo como “Senhor das Moscas”. O nome, enquanto se refere aos enxames de moscas sobre si, claramente refere-se ao personagem bíblico do Diabo. E segue na leitura de inúmeros temas e simbolismos. Tanto que qualquer um dos meninos pode representar diferentes papéis na sociedade de adultos da qual vieram. Para muitos críticos, ele simplesmente inverteu o clássico “Robinson Crusoé”, de Daniel Defoe (1660-1731), onde um único indivíduo impõe a civilização ao estado de natureza. Golding, ao contrário, ressalta sua descrença na bondade inata dos homens e em sua capacidade de criar um mundo melhor.
O romance de Golding foi escrito durante o período em que ele lecionava na Bishop Wordsworths School, instituição de orientação católica exclusivamente para meninos, em Salisbury, na Inglaterra. Ali, ensinou Língua Inglesa entre 1945 e 1962. Além dessa vivência de observar homens em formação e sua luta contra seu lado sombrio, ele recorreu ao suspense crescente, elemento que faz a diferença, pois avança à medida que põe por terra a ideia de uma aventura juvenil paradisíaca. O que o teria motivado a isso? Especulou-se, mas ele jamais confirmou que sua intenção era, a partir da experiência traumática da guerra, sepultar todas as utopias e ideologias, ao mostrar que o interesse da coletividade vai estar sempre comprometido por causa da vaidade e do desejo de poder, enquanto explora o conflito entre duas forças contrárias que habitam o ser humano. A situação da socialista União Soviética naquele momento era exemplar, com um ditador no poder, Joseph Stalin (1879-1953). Também na ilha isso faz com que alguns trabalhem juntos para alcançar os objetivos comuns, enquanto os outros se rebelam pelo terror e pela violência.
O livro já foi descrito como um tratado político e uma visão do apocalipse. Costuma ser citado como um dos clássicos da literatura do pós-guerra, ao lado de “A Revolução dos Bichos”, de George Orwell (1903-1950), e “O Apanhador no Campo de Centeio”, de J. D. Sallinger (1919-2010), criados para ressaltar o descontentamento naqueles anos de era nuclear e de ameaça de aniquilamento da vida na Terra pela bomba atômica. “Escrito de forma maravilhosa, trágico e provocativo”, observou o escritor E. M. Forster (1879-1970). “Para mim, ‘Senhor das Moscas’ sempre significou o motivo pelo qual os romances existem, o que os torna indispensáveis”, ressaltou Stephen King. “Esta obra brilhante é uma paródia assustadora do retorno do homem (em apenas algumas semanas) àquele estado de escuridão de onde ele levou milhares de anos para emergir. Para ser bem-sucedida, uma fantasia deve se manter muito próxima da realidade. Senhor das Moscas faz isso. Ela também precisa ser escrita de forma magistral. Esta é assim”, disse o crítico do “The New York Times Book Review”.
“Senhor das Moscas” teve duas adaptações para o cinema. A primeira, em preto-e-branco, foi lançada em 1963 e é considerada bastante fiel ao livro. A segunda, de 1990, embora possuísse um visual mais atualizado, difere em partes do original. Em tempo: a Editora Alfaguara acaba de lançar uma nova tradução de “Senhor da Moscas”, com seu tradicional requinte editorial.
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