Grandes livros continuam a ser escritos na era da tecnologia digital, mesmo que, muitas vezes, passem despercebidos ou sem a devida atenção da crítica brasileira, tão tradicionalista e conservadora quando o assunto é prosa ficcional. Ou precisam de um tempo para o merecido reconhecimento. Às vezes, a reação se dá por puro preconceito temático. Principalmente se essas obras tratam de uma ambientação mais contemporânea, ligada à chamada cultura pop, tida como descartável, de menor valor cultural e até mesmo desprezível, por suas citações ligadas a uma espécie de lixo cultural. Um romance exemplar disso é “A Fortaleza da Solidão”, do escritor norte-americano Jonathan Lethem. Nele, as histórias em quadrinhos são parte indissociável e fundamental em toda a sua estrutura narrativa. Mas a profundidade que seu texto alcança é difícil de ser dimensionada, pela capacidade de compor um rico e inesquecível retrato de uma época. No caso, a sombria e violenta América da década de 1970, que vivia a ressaca da contracultura, do movimento feminista e de outras lutas importantes pelos direitos civis deflagrados na década anterior.
Em mais de 600 páginas, “A Fortaleza da Solidão” é um romance para ser consumido, a priori, como puro entretenimento, pois sua a leitura é fluente e instigante. Mas, também, pelo seu caráter de tratado histórico. A partir dessas duas observações, tem-se diferentes leituras. O livro pode ser visto como uma crítica ao preconceito contra as histórias em quadrinhos, por exemplo. A narrativa de Lethem dá o merecido destaque aos comics pela sua importância no universo da cultura americana nos últimos setenta anos. Não apenas isso. A reputação que o romance conquistou no mercado americano, assim que foi lançado, com resenhas das mais entusiasmadas nos principais jornais e revistas, levou o tema à discussão em meios onde não tem o devido reconhecimento. Nesse sentido, o livro se coloca ao lado de outra narrativa consagrada, “As Incríveis Aventuras de Kavalier & Clay”, de Michael Chabon, publicado no Brasil pela Record, em 2002.
A trama de Lethem é focada na amizade entre Dylan Ebdus e Mingus Rude, um garoto branco e um negro, respectivamente. As referências dos nomes dos dois são óbvias. O primeiro é uma homenagem a Bob Dylan; o outro, um tributo a Charles Mingus – ícones da música americana do século XX. Ambos têm pais artistas – um é pintor e obscuro capista de livros; o outro, compositor e cantor de soul music – e foram abandonados pelas esposas quando os filhos ainda eram muito pequenos. Dylan não gosta de briga e teme as investidas dos garotos negros do bairro que o perseguem sem trégua. Sua vida é puro terror. Receia até a ida e a volta para a escola e morre de medo de ir até a banca de jornal comprar revistas em quadrinhos, sua paixão. Na sua escola, ele é um dos quatro brancos – os outros três são garotas, com as quais não tem nenhum contato. Tudo é aflição até que seu amigo Mingus começa a impor respeito entre a molecada mal vista do bairro e passa a protegê-lo quando estão juntos.
Dos seis anos de idade até a adolescência, eles se tornam inseparáveis e ficam unidos principalmente pelas revistas em quadrinhos. São leitores e colecionadores que fazem do dia a dia dos super-heróis parte de sua rotina e de seu universo. Acompanham as tramas, trocam idéias sobre as melhores sagas de cada super-herói e têm na memória os nomes de seus roteiristas e desenhistas preferidos. Até que um dia, na visita a um hospital, Dylan ganha um anel de um moribundo. O garoto acredita que o presente dá a seu possuidor poderes mágicos para voar e ficar invisível. Ele faz uma fantasia e cria o Aeroman, um super-herói que circula pelo bairro no combate ao crime. Não demora, claro, revela o segredo para Mingus. Os dois passam a agir juntos em becos e ruas escuras, à procura de criminosos. Delírio e fantasia se confundem nessa história cheia de referências da cultura pop americana da década de 1970, como competições entre DJs e muito grafite, com pichações artísticas que cobrem cada centímetro de parede e decoram um bairro em decadência.
Com uma pulsação febril e melancólica, “A Fortaleza da Solidão” tem um roteiro indispensável para quem quer conhecer aspectos curiosos como o melhor da black music que se fazia naquele momento. Nenhuma citação de discos ou músicas na narrativa é inventada, a não ser a carreira do pai de Mingus – que remete ainda à tragédia do astro Marvin Gaye, assassinado pelo próprio pai no apagar daquela que para alguns foi a década das trevas. Portanto, é só anotar os nomes e correr atrás das músicas e dos álbuns – algo quase irresistível por causa do entusiasmo com que os discos são comentados. Romance de formação, a história de Dylan e Mingus é um dos mais amargos e devastadores retratos de uma América que não sonhava mais com as utopias da contracultura da década de 1960. Um país chacoalhado pela humilhante retirada do Vietnã, com brancos racistas acuados e negros dispostos a demarcar seu espaço de qualquer forma. Se a década anterior foi do sonho, aquela pareceu do pesadelo.
O livro explora com densidade uma série de valores, símbolos e ícones de uma geração, com vasta gama de significados e um convite à reflexão. Se não bastasse, Dylan e Mingus têm de sobreviver numa solidão intensa, quase desesperada e cheia de responsabilidades para a pouca idade que têm em pelo menos metade da história. São obrigados a agir assim, sem a proteção de suas mães e vigiados, de longe, por pais distantes e reclusos. Sobrevivem submissos às regras das ruas, onde a integração racial preconizada na década anterior pelos movimentos civis não se completa e os conflitos continuam aflorados. O teto dos dois garotos começa a ruir pela chegada de um mal que super-herói nenhum consegue vencer, simplesmente porque eles parecem não existir no mundo real dos personagens: as drogas. Como diz a apresentação do livro, trata-se de uma história construída numa época em que qualquer atitude – o que você escuta, a quem se dirige no ônibus, o que faz com o dinheiro do lanche – está carregada de um explosivo sentido social, político ou racial.
O título do romance, para quem não fez ainda a relação, é uma referência direta àquela caverna gelada e cheia de cristais nos confins da Terra onde estão guardados os segredos – inclusive as fraquezas – do Super-Homem. Lethem se apropria do termo para fazer uma referência emocional de seus quatro personagens principais – Dylan, Mingus e seus pais –; e física, territorial, de onde se passa a história. Por outro lado, seu enfoque é exclusivamente o universo dos super-heróis da Marvel Comics, provavelmente a grande paixão de sua infância – pelo preciosismo e detalhes das citações e pelas críticas feitas ao conceito da turma da DC Comics. Seu gosto, aliás, recai muito mais para os tipos de segundo ou terceiro escalões, não muito populares e duradouros como os Inumanos e Luke Cage. Há citações sobre os X-Men. Homem-Aranha, Hulk, Capitão América, entretanto, não são muito citados. Os Quadrinhos no romance, aliás, aparecem lá pela página 70 e, só então, ganham relevância na vida dos dois garotos e se tornam indissociáveis no decorrer de boa parte de sua existência – que tomará rumos opostos e desiguais na fase adulta. Um romance inesquecível.
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