Enquanto a crítica implicava ou desdenhava de Henry Miller (1891-1980) como apenas um pornógrafo cujas qualidades dos seus textos deixavam a desejar, devido à informalidade da construção, o escritor inglês George Orwell (1903-1950) não escondeu seu entusiasmo ao ler “Trópico de Câncer”, lançado na França em 1934, e que considerou uma obra séria e de alto valor literário. Escreveu que Miller era “o único excelente escritor de prosa imaginativa que apareceu na língua inglesa nos últimos anos”. Décadas depois, Erica Jong acrescentou que Miller era muito mais um místico do que um pornógrafo. “Ele usa o obsceno para chocar e acordar, mas, uma vez acordados, ele nos leva às alturas”. O entusiasmo de Lawrence Durrell (1912-1990) não foi menor. “A literatura americana começa e termina com o sentido do que Miller fez”. E fez muito. Nos nove anos em que ele viveu em Paris, de 1930 a 1939, escreveu 40 livros. “Trópico de Câncer” é, sem dúvida, o mais representativo deles e considerado sua obra-prima.
Demorou, porém, para que o reconhecimento viesse. Pior. O romance em estilo autobiográfico se tornou um escândalo, mesmo com as críticas favoráveis de autores consagrados como T. S. Eliot (1888-1965) e Ezra Pound (1885-1972). A obra foi imediatamente proibida em boa parte do mundo onde se tentou publicá-lo por causa do seu caráter sexualmente explícito. Considerada imoral e obscena, entendia-se que sua publicação constituía crime. E assim permaneceu por mais de trinta anos, como foi o caso do Brasil, onde só saiu em agosto de 1963, pelo Ibrasa, com um longo e cuidadoso prefácio que tentava ressaltar sua importância literária e, assim, evitar a censura. Nos EUA, o veto durou até 1961 e os censores costumavam citar passagens para justificar a medida. Em uma passagem logo no começo do livro, por exemplo, ao falar de uma garota, o narrador observa: “(Ela) usava velas, tubos de fogos de artifício e maçanetas (para se masturbar). Não havia caralho que fosse suficientemente grande para ela… nem um. Os homens entravam nela e enroscavam-se. Ela queria picas extensíveis, foguetes, óleo quente feito de cera e creosoto. Cortar-te-ia o caralho e mantê-lo-ia dentro dela, se a deixasses”.
Trechos assim seriam inadmissíveis como alta literatura na década de 1930. Tentar convencer a crítica disso se tornou um desafio para os editores. “Trópico de Câncer” deveria ser classificado como, no máximo, um livro libertino e, portanto, vendido às escondidas, longe da vigilância dos moralistas. Mas Miller acreditava no contrário. Sabia que desafiar as regras era abrir caminho para uma literatura moderna, espontânea, visceral, em que escrevia como sentia, com crueza, sem seguir regras ou manuais. O romance foi feito para provocar, insultar, desafiar, a partir de um estilo sem estilo, irônico, desbravador até, que revelava um escritor de humor refinado, principalmente. Ele se mostrou alguém capaz de fazer algumas das páginas mais ásperas e, ao mesmo tempo, mais belas, de grandiosidade lírica, da literatura de seu tempo. Nas primeiras páginas, ele se auto-ironizou: “E isto, então? Isto não é um livro. Isto é injúria, calúnia, difamação de caráter. Isto não é um livro, no sentido comum da palavra. Não, isto é um prolongado insulto, uma cusparada na cara da Arte, um pontapé no traseiro de Deus, do Homem, do Destino, do Tempo, do Amor, da Beleza…. e do que mais quiserem. Vou cantar para você, um pouco desafinado talvez, mas vou cantar. Cantarei enquanto você coaxa, dançarei sobre seu cadáver sujo…”
Na história aparentemente biográfica, a imaginação se sobrepõe aos fatos reais que a inspiraram. O narrador é um outsider que, entre idas e vindas, em meio a certo caos, descreve suas experiências pelos bulevares da cidade, as andanças por suas pensões baratas, bebedeiras em cafés de terceira categoria, ao mesmo tempo em que convive com artistas e intelectuais igualmente miseráveis, sem dinheiro. Mesmo assim, tocam a vida a seu modo, em meio a sexo com prostitutas e mulheres solitárias. São experiências pouco românticas que ele mostra. A sua crueldade o leva a sentenciar que um de seus amigos próximos jamais seria um bom autor de livros, pelo menos de talento reconhecido. Do mesmo modo como retrata as pessoas mais próximas de seu círculo íntimo, seres que habitam os submundos de Paris no período em que separa as duas guerras mundiais e quando Miller passou muitas dificuldades até mesmo para comer.
E o que tem a ver o título do livro? A explicação mistura a geografia com o místico. Trópico de Câncer é o nome que se dá ao paralelo situado ao norte da linha do Equador terrestre e que delimita a zona tropical norte. Atravessa 3 continentes e 17 países. Nos pontos da Terra exatamente sobre trópicos de Câncer e de Capricórnio há ao menos um momento, em um único dia por ano, em que o Sol está em seu completo Zênite. “Estamos no outono do meu segundo ano em Paris. Mandaram-me para cá por uma razão que ainda não consegui compreender. Não tenho dinheiro, nem recursos, nem esperanças. Sou o mais feliz dos homens vivos. Há um ano, há seis meses, eu pensava ser um artista. Não penso mais nisso. Eu sou. Tudo quanto era literatura se desprendeu de mim. Não há mais livros a escrever, graças a Deus”. Sua ideia, portanto, era ressaltar o que se passava nessa área da Terra, naquele intenso e calorento começo de década de 1930, de expectativas sombrias.
Um contexto que o levou a escrever passagens geniais que inspirariam escritores como Charles Bukowski (1920-1994): “Estou vivendo na Villa Borghese. Não há um resquício de sujeira em parte alguma, nem uma cadeira fora do lugar. Estamos completamente sozinhos aqui e estamos mortos. Ontem à noite, Boris descobriu que estava com chatos. Tive de raspar-lhe as axilas e mesmo depois disso a coceira não passou. Como pode alguém adquirir chatos num lugar bonito como este? Mas isso não tem importância. Talvez nunca nos tivéssemos conhecido tão intimamente, Boris e eu, se não fossem os chatos.”
O ritmo acelerado e reflexivo em que mostra os personagens e coisas torna a leitura intensa e sedutora. O modo como o autor americano se impõe em “Trópico de Câncer” também continua a impressionar gerações de leitores, com sua prosa envolvente e libertária, mais do que libertina, de uma franqueza rara. “Simultaneamente direta e evasiva, poética e brutalmente franca, Miller não obedece a qualquer regra e da sua aparência caótica emerge um coquetel de emoções que recusam ter de se ocultar perante a sociedade”, observou seu editor português. Miller é um autor original não só por tratar de modo tão espontâneo e sem pudores a vida e o sexo, sem desvencilhar a importância que tem um para o outro. Ao invés de choramingar a fome e a miséria que teve de passar na capital francesa, ele ridicularizou-as, a si mesmo e a todos aqueles próximos, pela mesquinharia e egoísmo que deixavam expor. No romance, ele deixa claro que experimentou em Paris tudo o que havia de bom e de ruim na condição de exilado voluntário: o desenraizamento, a liberdade, o desespero, a vida anárquica e boêmia, a falta de dinheiro.
Narrado em primeira pessoa, o romance se mostra, 80 anos depois de seu lançamento, uma obra coerente e una e não uma colcha de retalhos eróticos ou pornográficos, como se disse por muito tempo. Tanto que levou o “The New York Times” a ressaltar: “A controvérsia nacional sobre ‘Trópico de Câncer’ proporcionará uma nova visão da atitude crítica americana com relação à literatura e à moral”. Henry Miller seria depois descrito como um dos mais intensos testemunhos literários de uma geração que mergulhou de cabeça na vertigem do século 20. Justiça seja feita.
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