Os Estados Unidos ainda não eram o coração do mundo, em múltiplos sentidos – econômico, ideológico, cultural etc –, às vésperas da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). E, também, durante e nos anos seguintes ao conflito. Difícil era perceber que o país passava por rupturas contra males diversos, alguns antigos: a barbárie do velho oeste que ainda persistia, as gangues urbanas de criminosos que controlavam os subúrbios das cidades grandes, o trabalho semi-escravo imposto aos imigrantes de origem européia, principalmente – e a vida em cortiços imundos e cheios de doenças – e a exploração da indústria do cinema por criminosos ligados à prostituição – antes da moralização de Hollywood, deflagrada na década de 1920. Os americanos descobriam ambições expansionistas além das fronteiras, desejos imperialistas, que seriam fundamentados nos ideais franceses de liberdade e igualdade, além de oportunidade. O caldeirão fervia, em contraposição a uma Europa belicista e decadente e um novo país começava a nascer como potência econômica mundial. Daí a ambição do título de Paralelo 42, de John dos Passos (1896-1970), marco da moderna literatura americana.
Para entender o título, é preciso observar que pelo menos treze estados norte-americanos são cortados pelo Paralelo 42 N, que fica no 42° grau ao norte do plano equatorial terrestre. Ou seja, atravessa o que se poderia chamar de o centro nervoso da América, como faz pensar a história do livro na primeira leitura: um romance que se passa no coração da América. Mas o sentido correto dessa obra monumental vai mais fundo e é mais amplo. Dos Passos queria expor as entranhas do bem e do mal de uma nação que conseguiu ver de modo quase antropológico e visionário em 1930 – quando o livro foi originalmente lançado, meses depois da quebra da Bolsa de Nova York, em outubro de 1929. Compôs, assim, uma das obras mais ambiciosas de seu tempo do ponto de vista da temática: além de uma estrutura inovadora de narração, que mistura trechos de música, manchetes de jornais e personagens históricos reais, como um inventor, o cientista e empresário Thomas Edison (19847-1931), e ficção para mostrar como as lutas de classe e batalhas econômicas fizeram dos EUA uma nação poderosa.
Do ponto de vista da técnica narrativa, Passos balançou a estrutura convencional do romance como se conhecia até então. Ele pretendeu compreender e explicar de onde veio e para onde caminhava seu país, no momento em que vivia numa encruzilhada no entre guerras. Além da vigorosa escrita, Paralelo 42 contraria o que o cinema americano passou a vender para o mundo a partir de 1930, como esforço de varrer seus erros e pecados e idealizar uma pátria que, na prática, era controlada por códigos de conduta moral e ideológica – contra o comunismo. Se parece rigoroso do ponto de vista histórico, esse filho de imigrantes portugueses – que escreveu um livro sobre o Brasil – acabou por fazer uma ponderação e declarou sua paixão pelo seu país, mesmo que às avessas, aparentemente. “Os EUA são um grupo de companhias holding, alguns aglomerados de sindicatos, um volume de leis encadernado em couro de bezerro, uma cadeia de cinemas, uma coluna de cotações da bolsa apagada e escrita por um rapaz da Western Union num quadro negro, uma biblioteca cheia de jornais velhos e livros com as quinas das páginas dobradas e protestos garatujados nas margens a lápis. (…) Mas, acima de tudo, os EUA são o falar de um povo”, observou.
Nesse contexto, Passos conta a saga de cinco personagens singulares, no decorrer das três primeiras décadas do século XX: Mac, Janey, Charley, Eleanor e Ward, tipos comuns, com defeitos e algumas virtudes, que lutam quase desesperadamente pela difícil sobrevivência, custe o que custar. A seu modo, cada um carrega a angústia de andar “sozinho, à procura, através da multidão, com os olhos sedentos, sedentos ouvidos prontos para escutar, sozinho sem ninguém.” Marginais de uma história inesquecível, que consagraria John Dos Passos como um dos maiores escritores norte-americanos do século XX. Com esse livro, o autor iniciou a linhagem que marcaria o início de importantes movimentos literários ou tendências, como os beatniks e outros nomes que desmistificaram a América idealizada pelo cinema, principalmente, como John Fante (1909-1983) e Charles Bukowski (1920-1994). Sua influência também seria percebida na contracultura dos anos de 1960 e 1970 e no cinema de Martin Scorsese (Gangues de Nova York e Os Bons Companheiros) e Sérgio Leone (Era uma vez na América). Paralelo 42 forma a trilogia USA, composta por 1919, publicado em 1932; e O Grande Capital, que veio quatro anos depois.
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