[05 de 100] O livro que dá desespero e fome

A originalidade do controvertido escritor norueguês Knut Hamsun (1859-1952) no romance Fome, seu mais famoso livro, publicado originalmente em 1890, não só ajudaria a lhe dar o Prêmio Nobel de Literatura, em 1920, como faria dele um dos autores mais influentes do século XX. O tema tratado no livro está presente, de modo inquestionável, em autores importantes como o tcheco Franz Kafka (1883-1924), em O Processo; o inglês George Orwell (1903-1950), em Na Pior, em Paris e em Londres; e, em especial, no americano John Fante (1909-1983), em Pergunte ao Pó. Suas invenções estéticas e temáticas teriam impressionado ainda os modernistas europeus e brasileiros na década de 1920. Hamsun conseguiu um feito raro, comparável a A Náusea, do francês Jean-Paul Sartre (1905-1980), de causar intensa sensação de aflição e desespero no leitor.

Mais que o estímulo à reflexão sobre as relações humanas e a indiferença da sociedade diante de um pobre miserável que perambula pelas ruas de uma grande cidade em busca de comida, Fome provoca reações psíquicas e físicas, de claustrofobia e angústia. O romance, que tem tradução no Brasil de ninguém menos que o poeta Carlos Drummond de Andrade, narra o calvário de certo escritor ou jornalista, na casa dos 30 anos, inteligente, mas que, por motivos não muito claros, vive no limite da extrema miséria, a ponto de vender os botões do próprio terno para comprar alguma comida. Desorientado pela inanição forçada, sofre com a humilhação e o descaso de quem pede ajuda em suas andanças. Hamsun conduz o leitor, com seu personagem, a uma situação limite de sobrevivência. E o faz se perder entre a sanidade e a loucura daquele homem tão comum e próximo, que comove pela sua incapacidade de despertar algum sentimento de humanidade nas pessoas.

A história tem muito de autobiográfico. Foi escrita quando Hamsun se mudou para a cidade de Christiania (hoje Oslo), em 1878. Ele viveu na pobreza por um bom tempo e literalmente circulou no esforço de comover alguém a lhe dar algo para se alimentar. Não por acaso, a obra foi ambientada nessa cidade. O alívio financeiro, por algum tempo, veio quando trabalhou na construção de uma rodovia. Talvez por ter vivido situações semelhantes de necessidade, o escritor criou uma obra extremamente verossímil, onde o sofrimento e as perturbações trazidas pela fome são elementos muito bem construídos no texto, numa busca incessante pelo hiperrealismo para, de fato, incomodar quem o lê. Atinge, assim, uma experiência rara e inigualável na história da literatura. Os críticos destacaram que o triunfo do livro foi seu autor ter criado uma forma de abordar a pobreza sem cair no clichê do marxismo.

Hamsun teve uma vida intensa e interessante tanto quanto os personagens que criou. Ele se destacou como crítico devotado das escolas literárias do Realismo e do Naturalismo francês da segunda metade do século XIX, e fez de Fome uma via alternativa às duas tendências dominantes naquele momento. Acabou por ir além e compôs quase um manifesto de vanguarda, com ingredientes inéditos de crítica política e social em que a sutileza não abre brecha para qualquer tipo de ataque à sua veia corrosiva e implacável. Faz isso ao manter o foco nas experiências vividas pelo narrador e suas paradoxais impressões sobre cada uma delas. Por isso, alguns estudiosos e biógrafos o definem como um dos criadores do chamado fluxo de consciência, em que os pensamentos do personagem são retratados sem interrupção. Essa característica é marcante em obra capitais do Modernismo, como Ulisses, de James Joyce.

O escritor era de uma coragem fora do comum para defender suas ideias e convicções. Sua aproximação com o nazismo foi explícita, com declarações públicas de simpatia a Hitler e apoio à invasão da Noruega e presenteou Joseph Goebbels com a medalha que ganhou do Nobel. Pagou um preço alto por isso. Apesar de muito idoso, foi preso e condenado depois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), além de internado em um hospício. Nada disso, entretanto, tira a integridade e o valor literário e histórico de Fome.

Última edição em português:
Geração Editorial, 2009.


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