Em um de seus filmes mais cultuados, “O Homem que Amava as Mulheres” (1977), o diretor francês François Truffaut (1932-1984) conta a história fictícia do engenheiro Bertrand Morane (interpretado por Charles Denner), que trabalha no Instituto de Mecânica de Fluidos e faz testes em maquetes para tentar avaliar o efeito das turbulências atmosféricas em aviões durante os voos ou viagens de navios por mar. Morane é um paquerador compulsivo – não é ninfomaníaco, porém, pois sua finalidade é a conquista, não exatamente o sexo em si. A ponto de, todas as manhãs, “cantar” a moça do serviço de despertador por telefone para que ceda e jante com ele. Ou simular um acidente de carro apenas para conseguir o telefone da dona de dois monumentais pares de pernas longas e firmes que viu de relance da janela de uma lavanderia instalada no subsolo de um sobrado.
Depois das mais divertidas e inusitadas formas de galanteio, o incorrigível e incansável personagem tem o repentino impulso de elaborar uma autobiografia de suas aventuras amorosas – quase sempre concretizadas. Não demora a conseguir uma elegante editora para publicar o volume, que também se vê seduzida por ele. O livro se tornará um sucesso editorial, graças, em especial, às muitas garotas que ele amou, curiosas para ver se foram lembradas por ele. O escritor – um homem na casa dos 40 anos que está longe de ter uma beleza masculina modelar –, no entanto, morre atropelado, sem poder ver o resultado de seu trabalho. Em um dos mais marcantes da história do cinema, seu velório é invadido por incontáveis belas mulheres de diversas idades, todas de preto e tristonhas pela partida de Morane.
O que poucos fãs de Truffaut sabem é que o tal livro de fato existiria e seria escrito pelo próprio diretor pouco depois de concluir o filme – com roteiro seu, auxiliado por uma mulher e um homem, Suzanne Schiffman e Michel Fermaud. Para os brasileiros, em especial, o volume, em formato de bolso, saiu em 1995, em única edição, pela editora Imago, com tradução de Fernanda Scalzo e apresentação do jornalista Otavio Frias Filho, diretor editorial do jornal “Folha de S. Paulo”. O simpático e delicado livro – com charmosa capa do artista gráfico Victor Burton – é uma joia literária que revela uma faceta desconhecida de Truffaut e seu talento para fazer literatura que ele jamais voltaria a experimentar.
O diretor explica na apresentação que o livro é a transformação em romance de um roteiro de filmagem, feita para deixar a leitura mais fluida e interessante. O diretor, como escritor, mostra-se surpreendente. Além de ser um ótimo contador de histórias no papel – assim como nas telas –, ele esbanja imaginação para tornar seu personagem o mais factível possível, sem ser agressivo, imoral ou amoral com as mulheres. Ao descobrir com uma funcionária da locadora – que também se encantou por ele – o telefone de uma mulher que está disposto a ter a qualquer custo, Morane liga para a moça. Com impressionante habilidade e improviso verbal, ele lhe diz: “É difícil explicar, você estava na lavanderia e eu a vi sair e andar na rua até seu carro. Estava com um vestido de seda verde claro, com seu decote redondo e franjas nas mangas e em volta dos joelhos. O movimento do seu andar, o movimento do seu vestido, era lindo de se ver. Quando atravessou a rua, tive a impressão de que você estava conquistando a cidade”.
Morane, sem dúvida, é o próprio Truffaut falando, dedicado em render tributos às muitas mulheres que amou – tanto ao levar suas personagens às telas quanto por se apaixonar pelas atrizes fora delas. No prefácio, Frias Filho observa que no caso do Dom Juan criado pelo diretor, “ocorre uma inversão curiosa antes como filme e, depois, deslocado talvez pelo forte magnetismo literário do tema, na forma de novela, ou cine-romance”, como definiu o autor. “Em oposição às dissonâncias de Godard, Truffaut corresponde ao lado melodioso, harmônico, da nouvelle vague”. Há no livro, segundo ele, “uma leveza, uma graça, nas surpresas do enredo, uma delicadeza no trato da linguagem sexual que dissipam a pesada herança do mito e nos permitem ver Don Juan como um francês dos anos de 1970, às voltas com mulheres de pantalona e óculos escuros”. Para o editor, “as peripécias em que se mete um homem que não faz outra coisa senão perseguir as mulheres se presta maravilhosamente à situação cinematográfica: se ‘presentifica’ outra vez, pois da mesma maneira que a música e o sexo, e em oposição à literatura e o amor, o cinema não admite nem passado nem futuro”.
Recebido com entusiasmo pela crítica francesa, “O Homem que Amava as Mulheres” foi descrito na época como um híbrido entre a narrativa literária e a linguagem cinematográfica – trata-se de um “cine-romance”. Portanto, não é um livro que inspirou o filme. Ao contrário, é quase a versão romanceada do mesmo, com algo a mais, além da sua qualidade de texto. Ou seja, a obra que existia dentro do longa-metragem, escrita de modo ficcional pelo personagem principal da trama, ganhou vida e se tornou acessível à curiosidade do espectador. Com o refinado humor francês, marcado pela sutileza e pelos gestos, mais que por diálogos, o divertidíssimo texto de Truffaut é uma coleção impagável de galanteios – e muita cara de pau do protagonista – em que a gentileza das mulheres diante do modo de seu modo de agir mantém o nível e faz do exercício da conquista um delicioso jogo do sexo.
Ao ser lançado no auge do movimento feminista em todo o ocidente na década de 1970, “O Homem que Amava as Mulheres” passou ileso às críticas das militantes mais radicais quanto à cafajestice de Morane. A explicação para isso estava no fato de que Truffaut era alguém acima de qualquer suspeita quanto a ser agressivo com o sexo oposto. Toda a sua filmografia se tornou uma reverência à feminilidade. O filme e o livro são uma celebração a esse amor e, através do olhar de seu personagem principal, estuda o amor de maneira pretensamente filosófica, segundo alguns críticos. Ambos são, sem dúvida, comédias de costumes, mais do que uma trama machista para ser levada a sério. Especialista em retratar mulheres fortes, Truffaut finalmente dedicou uma história para falar dos homens e de suas obsessões pelo sexo oposto, ao mesmo tempo em que explora suas fraquezas e conflitos na época.
O romance segue o filme com fidelidade. Numa passagem, Morane explica que decidiu escrever sua história após se dispensado por uma bela quarentona que é dona de uma loja de lingeries – cuja vitrine repleta de calcinhas, sutiãs, anáguas e cintas-ligas o narrador adora olhar com fetiche quase todos os dias, assim como uma infinidade de homens que por ali passa. Ela lhe explicou que preferia rapazes com menos de 30 anos, e não alguém da sua idade, como o engenheiro. “Não é a minha primeira derrota, evidentemente, mas é a mais inesperada: sempre pensei que isso pudesse acontecer um dia, mas com uma jovem, e eis que uma mulher da minha idade me manda passear. Então, decido escrever um livro. Talvez, também, porque diante das fotos antigas que fui jogando na gaveta de lembranças, tive medo de esquecer: já há tantos nomes de mulheres que não consigo me lembrar, ainda que tenha na memória todos os acontecimentos ligados a esses rostos.”
Quase todo narrado na primeira pessoa, com frases curtas e diretas, sem qualquer pretensão ou ambição literária, “O Homem que Amava as Mulheres” impressiona, aos poucos, pelo tom poético e sensível. Cada capítulo tem uma ou mais mulheres como coadjuvantes do narrador, em historinhas amorosas que se sucedem, como um diário sobre os relacionamentos ou tentativas de um homem que é atraído pelas mulheres, ao mesmo tempo em que seu charme e galanteio conseguem impressionar muitas delas. Não há profundidade ou desespero nesse jogo de presa e caça, como se a vida devesse seguir um curso natural em que não cabe espaço para o assédio, a perseguição e a neurose. Bem diferente da realidade, claro.
Fica evidente que o propósito de Truffaut não é fazer apologia à habilidade de um homem sem caráter,que se limita a iludir e a enganar as mulheres. Por isso, seu livro deve ser apreciado pela sua leveza, senso de humor e, claro, celebração ao irresistível charme feminino.
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