[44 de 100] O rápido caminho rumo à loucura, segundo Sylvia Plath

21Os Estados Unidos andavam sombrios, quase claustrofóbicos, naquele verão “opressivo” de 1953, quando foi eletrocutado o casal Julius e Ethel Greenglass Rosenberg, em 19 de junho, após condenação por ter supostamente passado informações sobre a bomba atômica para a União Soviética. Não se falava em outra coisa. E o medo e a paranóia ante a ameaça comunista se espalhavam pelos neurônios dos americanos. Nova York, sua maior cidade, não era mais a mesma que se via no cinema. Perdera o glamour e “já estava suficientemente horrível” para tornar a vida de seus moradores tortuosa. “Às nove da manhã, o falso frescor que vinha da terra suavizada pelo orvalho da noite se evaporava como o despertar de um sonho. As ruas abafadas, espécie de miragem cinzenta no final dos desfiladeiros de granito, pareciam vibrar ao sol, e as capotas dos carros tostavam, brilhando de tão quentes; a poeira seca, cheia de fuligem, entrava nos meus olhos e descia por minha garganta.” 

Assim começa a narrativa em primeira pessoa de Esther Greenwood, protagonista do romance “A Redoma de Vidro”, da poetisa e escritora americana Sylvia Plath (1932-1963). Esther é uma jovem e brilhante estudante dos subúrbios de Boston, Massachusetts, que faz estágio de verão em famosa revista feminina nova-iorquina. De um momento para o outro, ela cai em um mundo novo e cheio de futilidades, no qual não consegue se encaixar. Apesar de inegavelmente talentosa, a jovem tem dificuldade em se inserir verdadeiramente no mundo de vaidades no qual acabou de entrar – e que inevitavelmente remete ao romance (e ao filme) “O Diabo Veste Prada”, publicado quatro décadas depois. “Achava que estava vivendo a melhor época da minha vida. Achava que era invejada por milhares de alunas de faculdade exatamente iguais a mim nos Estados Unidos inteiros, que só queriam ficar viajando de um lado para o outro, usando sapato de couro daquele mesmo número 36 que comprei na Bloomingdale’s num horário de almoço, combinando com couro preto e bolsa de couro preto.”

Ester vive tudo que uma garota ambiciosa poderia sonhar. Mas uma foto sua ao lado das outras onze garotas selecionadas, publicada na revista onde trabalha lhe causa estranhamento. “Quem visse a foto diria: olha as coisas que acontecem neste país. Uma moça tão pobre, que não tem dinheiro nem para comprar uma revista, vive dezenove anos numa cidade lá nos cafundós, aí arruma uma bolsa de estudos para a faculdade e ganha um prêmio aqui, outro acolá e acaba dirigindo Nova York como se fosse seu carro particular. Só que eu não estava dirigindo nada, nem a mim mesma”. Numa das passagens, ela observa mais uma vez sobre a posição privilegiada em que se encontra: “Deveria ficar tão animada quanto a maioria das garotas, mas não conseguia. Eu me sentia imóvel e oca como o olho de um furacão, agitando-se estupidamente no meio daquele enorme tumulto.”

Autobiográfico, o romance de Plath tem uma abordagem inconformista cada vez mais impressionante, à medida que os anos e as décadas passam. Tocante pela solidão em que a jovem e corajosa Esther se vê obrigada a se colocar no mundo, sua história funciona como um contraponto para o decantando modelo de vida americano, no auge da guerra fria entre americanos e soviéticos, simbolizada pela vida numa excitada metrópole cuja cultura e estilo de vida são idolatrados por moças de sua idade que começam a ganhar espaço de emancipação e liberdade para trabalhar e ambicionar carreira profissional. Assim como a escritora, a experiência de Esther em Nova York a desorienta. “A única coisa que (eu) fazia era despencar do hotel para o trabalho e para as festas e das festas para o hotel e outra vez para o trabalho, como se fosse um ônibus embrutecido e insensível. Deveria ficar tão animada quanto a maioria das garotas, mas não conseguia”.

Na nova vida, Esther cria um pequeno ciclo de amizades: a hedonista Doreen e a devotada Betsy, cujo padrão de comportamento é o de uma garota certinha demais. Também convive com uma espécie de benfeitora, Philomena Guinea, que fora, havia tempo, uma bem-sucedida autora de ficção e que pagará depois o tratamento hospitalar dela. A história segue com detalhes de incidentes cômicos e trágicos que ocorrem durante seu estágio, além das lembranças de seu namorado, Buddy Willard. Ao final da experiência, ela volta para casa com certo desânimo. Para piorar, chega a notícia de que não foi aceita para um curso de redação e decide passar o resto do verão escrevendo um romance, embora saiba que não tem experiência de vida suficiente para fazer algo relevante. Sem saber o que fará de sua vida quando deixar a faculdade, Esther teme seguir o caminho comum a muitas moças da época, como o casamento e a maternidade. Ou trabalhar como datilógrafa ou secretária.

Com certa rapidez, ela se afunda na depressão, que lhe provoca dificuldades para dormir. É o começo de uma vida atormentada. Seu psiquiatra identifica nela uma “doença mental” e recomenda sessões de eletrochoques. A moça fica traumatizada pela terapia, administrada incorretamente, e decide não mais fazê-la, além de interromper os medicamentos. Seu estado mental piora e ela descreve os males que a atormentam como a sensação de estar presa em uma redoma de vidro, lutando para respirar – daí, o título do livro, claro. Esther fracassa em algumas tentativas frustradas de suicídio, como afogamento e corte dos pulsos, antes de partir para algo mais eficaz e mortal. Ela deixa um bilhete dizendo que vai dar uma “longa caminhada”, tranca-se no porão de sua casa e engole cerca de cinquenta pílulas para dormir, prescritas para sua insônia. Salva a tempo, é mandada para um hospital psiquiátrico.

Ao chegar à última linha de “A Redoma de Vidro”, certamente o leitor correria em busca de outros livros de ficção de Sylvia Plath. Se o fizer, nada encontrará, pois este é o único romance seu, escrito em 1961 e publicado originalmente quase dois anos depois, sob o pseudônimo “Victoria Lucas”, em 1963. Sylvia não estava bem quando o fez, mas parece ter visto nesse exercício uma experiência libertária, uma forma de expressar suas idéias, criticar a falta de liberdade e a opressão contra as mulheres. Não faz um discurso feminista, mas se mostra como alguém que vê no fato de ser livre o caminho para a felicidade. Por meio de sua personagem, Plath relata suas próprias angústias, dúvidas e neuroses, como o vazio causado pela morte do pai, a pressão exercida pela mãe, a relação de amor, dependência e rancor velado entre elas, seus primeiros envolvimentos amorosos. 

Embora não seja considerado de memórias, pois o nome de pessoas e de lugares foram trocados, a doença mental da protagonista é parecida com as experiências vivenciadas pela autora ao longo da década de 1950, período de sua juventude. A escritora pode ter sido transtorno bipolar ou depressão clínica. A autora cometeu suicídio um mês após a primeira publicação da obra, aos 30 anos, em 27 de fevereiro de 1963. Casada com o poeta inglês Ted Hughes, com quem teve dois filhos e viveu uma relação turbulenta, Plath foi vista como uma concorrente do talento do marido Ela parece não ter escondido isso, pois viveu entre amá-lo e, ao mesmo tempo, tentar superá-lo. Seus poemas, a maioria publicada após sua morte, comprovam seu talento singular, que se estende a esse romance de qualidade excepcional que o tempo tratou de confirmar. “Redoma de Vidro” é o resultado da combinação de seu talento literário com obstinação de alcançar a perfeição.


Comentários

2 respostas para “[44 de 100] O rápido caminho rumo à loucura, segundo Sylvia Plath”

  1. Gonçalo,
    Perdoe-me mas, sem querer, deletei seu e-mail, ao tentar responde-lo.
    Meu nome é nicia medalha calaza, de Niterói, RJ, bibliotecária de formação.
    No entanto, conforme falei para Rafael, o que vale é ser amante de Literatura, Cinema e Artes Plásticas, todos com com maiúsculas, mesmo. Tb Música, claro.
    Nicia.

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