Descarrego em Nova York

Tem coisas que só acontecem aqui em Nova York. Por exemplo: durante o inverno, antes e depois de uma tempestade de neve, os carros da empresa de saneamento despejam sal e areia no asfalto. Isso, é claro, ocorre em qualquer cidade americana com tradição de acúmulo de gelo. O cloreto de sódio, sabe-se, dificulta o congelamento do pavimento e ajuda a evitar que as vias virem pistas de patinação. Mas aí sai o sol, derrete tudo, seca as ruas e deixa o sal à mercê da ventania que não para durante o inverno. Desse modo, o sujeito sai de casa e após andar um quarteirão, está com a boca ressecada: como se tivesse comido um bacalhau diretamente na banca do mercado. A sede que dá e o gosto amargo é, bem…, de amargar. E eu nunca senti isso em outras paragens.

Os problemas com a salinação das ruas não terminam aí. O produto vai para o lençol freático, contaminando a água que terminará nas torneiras. Está num ponto que basta ligar o chuveiro para se tomar um bom banho de descarrego. É sal grosso que sai como se o encanamento tivesse ponto de origem no mar. A empresa de tratamento deveria se chamar Iemanjá.

Outro dia, um vizinho apareceu com o cabelo verde. Não seria de se espantar, já que aqui as tinturas são moda para crianças, adolescentes e até idosos. Lembre-se de que Frank Sinatra – o machão paroxístico – morreu com cabeleira azul. Num primeiro momento, achei que meu conhecido havia aderido ao movimento gótico – vestido todo de preto e madeixas com a tonalidade chocante de um refrigerante energético. Mas o homem nunca me pareceu dado a modismos. Ele é judeu ortodoxo. Ao notar meus olhares à sua juba sob o quipá, envergonhado, tratou de se explicar:

– Lavei o cabelo com um xampu verde, e ao enxaguar, a espuma não saiu da cabeça. Há dois dias estou tentando tirar o produto. Fui até a um médico, que explicou o mistério: é a água salgada que não dissolve o xampu. Estou saindo para comprar água mineral – sem sal – que é para limpar os resquícios.

Logo me ocorreu que o problema dele é ainda maior do que uma juba verde. Por ser judeu – etnia com propensão a problemas cardíacos – todos esses sais de banho vão acabar elevando sua pressão arterial. A continuar nesse pique, em breve vou ter de “sentar” shivá – a cerimônia de luto israelita – em seu funeral.

Neste começo de primavera, o território está pior do que o deserto de Atacama, no Chile. Se alguém cair em local escondido, poderá ser encontrado daqui a milênios em perfeito estado de mumificação. Para se ter uma idéia, as folhagens do jardim magnífico do River Café – que desde o Brooklyn dá a melhor vista da ilha de Manhattan e ficou famoso num comercial brasileiro de uísque nos anos 1980 – secaram a ponto de parecer um cenário da caatinga. Dava para filmar Vidas Secas no pedaço. Coloque-se ali uma família de nordestinos chorando lágrimas delgadas, tendo à mão uma criança morta e aos pés uma cabaça, e o resultado será a reprodução da obra de Cândido Portinari, da série “Retirantes”.

E tudo isso porque ninguém quer patinar no gelo. A cidade gasta US$ 3 bilhões em sal grosso a cada inverno. O produto acaba com os sapatos e roupas. É por causa dele que se veem aquelas escriturárias elegantes com meia grossa sobre a meia de seda, e tênis esportivos, saindo do trabalho. Elas trocam os calçados para economizar os mais caros, que quebram como cristais depois de um quarteirão de luta contra o cloreto de sódio nas ruas. Do jeito que as coisas andam, quem sair de Manhattan é bom não olhar para trás. Corre o risco de ter o mesmo destino da mulher de Lot: virar estátua de sal.


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