O que há com seu peru?

Toda última quinta-feira de novembro comemora-se nos Estados Unidos o “Thanksgiving Day”. Trata-se de uma espécie de Dia de Ação de Graças, só que laico e ecumênico. Relembra-se um legendário rebu que colonos puritanos ingleses e uma tribo nativa teriam promovido em 1621. Uma festa da colheita, que sem a ajuda dos índios não teria sido possível. Foram eles que ensinaram a inglesada a plantar milho, evitando que se repetisse em Plymouth, Massachusetts, a tragédia ocorrida em Jamestown, na Virgínia. Lá, os europeus morreram de fome, pois os velhos ocupantes da terra se fecharam em copas e não deram o caminho das pedras para os recém-chegados. Ao contrário daquilo que se destinava aos bons samaritanos silvícolas da Nova Inglaterra, que foram, dizimados anos depois do rega-bofe. Hoje, nos lares americanos, repete-se a comilança, com ameaças de morticínio entre familiares, irritados com a demora do jantar e a excruciante proximidade com parentes que durante o restante do ano estão piedosamente
distantes.

Mas quem paga o pato neste dia é o peru. Prato de resistência, junto do milho, esta ave é consumida em níveis industriais. São devorados 45 milhões de maleagris gallopavos nos Estados Unidos durante o Thanksgiving. Os pobres-diabos são criados em fazendas, pois os animais selvagens são protegidos por lei, e não podem ser abatidos nas matas. Ou melhor, em alguns lugares eles estão a salvo. Acontece que, com a entrada deste bicho na lista de espécie em perigo de extinção, a peruada se deu bem. Pode-se dizer que bem demais. Ao ponto de, em Nova Jersey, por exemplo, terem procriado como coelhos. Hoje, viraram pragas em jardins e matagais do Estado.

Passeiam por quintais como se fossem gatos vira-latas. Fazem poleiros em árvores exóticas que residentes pagaram fortunas para trazer dos mais remotos cantões do planeta e enfeitar suas propriedades. A passarada acarpeta gramados manicurados, com estrume que serve de adubo para ervas de menor status nas artes da jardinagem. E há registros de alguns atrevidos, de maus bofes, atacarem crianças e animais de pequeno porte. Os contribuintes jersianos – que pagam os maiores impostos de propriedades no país -, resolveram dar um basta nesta folia. Neste ano, concederam licenças de caças – um abate por pessoa – para tentar controlar a explosão populacional dos chamados wild turkeys.
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Sabe como é americano: pulam em qualquer oportunidade para dar uns tiros. Caça é com eles mesmo. Meu sobrinho fez 10 anos neste mês, e ganhou de presente uma carabina maior do que ele. É verdade que o garoto mora na Virgínia, onde as caminhonetes (meios de transporte preferido dos nativos) contêm, nas cabines, onipresentes suportes para múltiplos trabucos. A partir da segunda quinzena de novembro, caravanas de caçadores partiram desde aquele Estado, para se juntar à turba fortemente armada de outros locias, salivando na antecipação do abate de perus em Nova Jersey. Na televisão, foi possível ver que esse exército não estava para brincadeiras. Tinha Mané paramentado como ninja, outros como comandos especiais militares, com visores noturnos, GPS, e todo tipo de gadgets eletrônicos.

Um dos aparelhos mais intrigantes é um apito eletrônico para chamar perus. Ouvi um sujeito grandalhão falando perunês, sem sotaque aparente, em meio à mata. Mas acho que o tradutor estava registrando a frase errada na língua dos bichos. Ao invés de falar “Vem peruzinho, vem pra cá que tem coisa boa neste pedaço”, tenho certeza de que dizia: “Foge turma, que aqui tá cheio de gente armada até os dentes”.

O resultado é que durante os primeiros sete dias de caçadas, apenas um mísero peru magrinho foi abatido. Um dos irritados entusiastas do tiroteio, sujo, exausto, carregando vários quilos de equipamentos inúteis deu entrevista explicando seu fracasso. “O problema é que peru tem visão extraordinária. E eles são muito espertos”, declarou o Jim das Selvas. Isso, diga-se, sobre um animal incapaz de sair do confinamento de um círculo feito no chão com giz. O duro é colocar o bicho dentro dessa prisão. Por essas e outras, nesse “Thanksgiving Day” – como em todos os outros do passado e do futuro – vou comer um peru comprado congelado, depenado e já temperado. Fica aos encargos de minha perua (aquela santa que mora aqui em casa), cozinhar o bruto. Wild Turkey, por mim, será consumido aos goles, pois vem engarrafado na forma do precioso líquido que é o bourbon whiskey, vindo do Kentucky.


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