O samba-soul irresistível de Elza e Dom Salvador

Elza Soares - Elza Pede Passagem feeDiante de inúmeros álbuns obrigatórios lançados por Elza Soares desde que ela debutou com Tenha Pena de Mim (1960) e se consagrou com o fundamental A Bossa Negra (1961), fica difícil explicar a escolha de Elza Pede Passagem para ser celebrado hoje, em mais um capítulo  da coluna Quintessência. A justificativa mais razoável talvez seja o fato de este álbum irresistível, lançado em 1972, marcar o encontro da cantora com o pianista Dom Salvador, que assina arranjos de todas as faixas. Outro dado decisivo para a escolha, claro, é a disponibilidade de audição do biscoito fino na internet, de maneira que o leitor que desconhece o trabalho possa desfrutar de mais uma experiência de descoberta, um dos grandes prazeres que a música oferece a nós, reles mortais.

Quando entrou em estúdio para lançar Elza Pede Passagem pela Odeon, sob direção musical do maestro Lindolfo Gaya, Elza tinha 41 anos e uma bagagem impressionante – tanto de vida quanto de produção artística. Em pouco mais de dez anos de registros fonográficos já havia lançado um sem-número de compactos e mais de duas dezenas de LPs. Todos eles carregados com o registro impactante da voz voz rouca e singular que rendeu a ela, em 2000, o título de “Maior Cantora do Universo”, em premiação da Rádio BBC de Londres.

Naquele turbulento e sombrio 1972 da era Médici, Elza havia acabado de voltar de uma temporada na Itália com o ex-marido Garrincha – desnecessário falar aqui dos bons e maus bocados passados por ela ao lado do gênio de pernas tortas. Além de preparar este novo LP, a cantora voltou aos palcos, a todo vapor, com o show Elza em Dia de Graça. O repertório primoroso da nova bolacha e o desempenho sempre inspirado da cantora por si só garantiriam a Elza Pede Passagem resultado acima da média dos trabalhos de muitos outros intérpretes da época. E basta uma primeira audição para concluir que o título do álbum é para lá de assertivo e se impõe como carta de intenções. Afinal, se Elza está a pedir passagem, caro amigo, bem sabemos que a dúvida posterior será algo como “alguém aí anotou a placa?”. E o que dizer, então, de um álbum que, além da voz inconfundível da cantora, ainda traz a assinatura de Dom Salvador como arranjador?

Imagem da contracapa do álbum "Elza Pede Passagem" (1972), criação do lendário artista gráfico Joselito
Imagem da contracapa do álbum Elza Pede Passagem (1972), criação do legendário artista gráfico Joselito

Nascido em Rio Claro, o pianista e compositor paulista consagrou-se na Cidade Maravilhosa ao integrar o Copa Trio, de Dom Um Romão, liderar o Rio 65 Trio e o Salvador Trio e, depois, criar o noneto Abolição (leia post de Quintessência sobre Sangue, Suor e Raça), big-band embrionária das fusões entre a música brasileira, o funk e a soul music que, com essa mistura quente, abriu caminho para o movimento Black Rio dos anos 1970.

Hábil, portanto, em lidar com hibridismos de gêneros musicais, depois de ter um “intensivão” da produção afro-americana com o produtor Hélcio Milito (leia entrevista com o pianista e entenda), Dom Salvador atribuiu às canções de Elza Pede Passagem um tempero especialíssimo de sambalanço e samba-soul. O “prato” servido pela dupla, claro, é irresistível. Desses álbuns que colocamos para tocar e, meia hora depois, lamentamos profundamente quando os alto-falantes ressonam o último acorde.

O repertório que compõe a gema traz um frescor atemporal de informação moderna: Cheguendengo, da inspirada dupla Antonio Carlos e Jocafi e Renato Luiz Lobo; Saltei de Banda, composição de Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix com letra malandra que remete à estética da Pilantragem; Maria Vai Com As Outras, de Toquinho e Vinicius; Samba da Pá, de João Só, autor do sucesso Menina da Ladeira; A-B-C da Vida, de Haroldo Barbosa e Luis Reis; Barão Beleza, de Tuzé de Abreu; Rio Carnaval, de Nilton Russo; O Gato, deliciosa composição de Gonzaguinha; Pulo, Pulo, clássico de Jorge Ben extraído de outra pepita do samba-Soul, o LP Força Bruta; Amor Perfeito, de Billy Blanco e Mais do Que Eu, do grande João Nogueira. Com o perdão da alusão ao título, trata-se de LP com passagem livre para a lista dos grandes álbuns dessa artista emblemática chamada Elza Soares.   

Ouça a íntegra de Elza Pede Passagem

Veja vídeo da TV Cultura em que a cantora interpreta Saltei de Banda, de Zé Rodrix e Luiz Carlos Sá



Dito isso, duas informações finais: 

– A arte da capa e da contra-capa, que sintetiza a modernidade do álbum – Elza como soul-sister, à la Bobby Humphrey – foi produzida por Joselito, um dos craques da arte gráfica na indústria fonográfica brasileira da época;

– O álbum não contém ficha-técnica, portanto, não foram creditados os músicos que, sob a batuta de Dom Salvador, fizerem deste uma das obras-primas de Elza. 

MAIS
– Também em 1972, Elza lançou outro álbum imperdível, de título quase epônimo ao do Abolição, Sangue, Suor e Raça (confira a íntegra), em parceria com Roberto Ribeiro;

– Elza Pede Passagem foi relançado em CD na caixa Negra, organizada pelo pesquisador Marcelo Fróes, do selo Discobertas, que compilou a produção da cantora entre 1960 e 1988; 

– Na edição de março de 2009, a cantora foi entrevistada pela Brasileiros. Confira a íntegra da conversa com a repórter Tatiana Cavalcanti. 

Boas audições, boas leituras e até a próxima Quintessência!

 

 


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