Contar a história do álbum homônimo de estreia do Sambalanço Trio requer breve passagem por um momento divisor para a Bossa Nova: o show coletivo realizado no mítico palco do Carnegie Hall, em novembro de 1962, que apresentou, a partir de Nova York, o novo gênero ao mundo. E o que tal evento teve a ver com a história do combo paulistano liderado pelo pianista Cesar Camargo Mariano? O artífice da noite de gala na Big Apple foi o americano Sidney Frey, presidente da gravadora Audio Fidelity, que lançou o disco do Sambalanço Trio. Dois meses antes do show no Carnegie Hall, Frey veio ao Brasil negociar com o Itamaraty uma apresentação na qual pretendia introduzir ao público americano os protagonistas do que considerava uma nascente revolução, capitaneada por Tom Jobim e João Gilberto.
Mas, naquela noite que se tornaria histórica, nem tudo foram amores, sorrisos e flores como, provavelmente, gostariam João e Tom. Permeada por problemas técnicos e atrações díspares, a apresentação acabou gerando suspeições, críticas e controvérsias, tanto para uma minoria de insatisfeitos, na plateia, quanto para parte da imprensa brasileira e estrangeira. Vale lembrar, entre as 15 atrações, foram elencados nomes que dificilmente poderiam, de fato, serem rotulados de Bossa Nova, como o cantor Agostinho dos Santos, o violonista Bola Sete e o pianista argentino Lalo Schifrin – por mais que fossem eles músicos do primeiro escalão e já tivessem, inclusive, algum reconhecimento internacional, seria incorreto dizer que os três integravam o núcleo embrionário do novo movimento.
Fiasco ou não, fato é, o manda-chuva da Audio Fidelity não perdeu tempo e, logo, começou a capitalizar com a novidade ao assinar contrato com o Bossa Três, um dos mais quentes combos de samba-jazz do Rio de Janeiro. Espécie de proto “power-trio” (como diriam os roqueiros, anos depois), o Bossa Três, era formado pelo pianista Luís Carlos Vinhas, o baixista Tião Neto, egresso do Sexteto Bossa Rio, que era liderado por seu conterrâneo de Niterói, o pianista Sérgio Mendes, e o baterista Edison Machado. Como o sobrenome sugere, Edison castigava, sem dó, o diminuto set de sua bateria e foi tão divisor para o instrumento quanto Milton Banana. Considerado responsável por verter para a bateria a batida diferente do violão Bossa Nova, Banana tocou com Tom e João no Carnegie Hall e integrou as gravações do clássico Chega de Saudade (1959), a estreia luminar do baiano.
Esperto, meses depois de apostar no Bossa Três, já no início de 1964, Frey decidiu instalar no Brasil uma base paulistana da Audio Fidelity que, entre outros, gravou álbuns de Alaíde Costa, do próprio Milton Banana, do compositor Walter Santos (autor de Amanhã, clássico dos mais belos e obscuros, da fase inicial da Bossa Nova) e a inspirada estreia do Sambalanço Trio (o termo “sambalanço” foi cunhado por Carlinhos Lyra e teve até “patente” registrada pelo cantor, que havia temporariamente rompido com o amigo Ronaldo Bôscoli e procurava dissociar-se da Bossa Nova). Na contramão da onda moderna defendida por Frey, o primeiro álbum de Geraldo Vandré – ícone da canção de protesto, que era harmonicamente mais pobre e menos sofisticada, mas ganhou força de resistência depois do Golpe de 1964 – também foi lançado pelo selo americano.
Das noites de improviso ao primeiro registro
Dito isso, vamos ao álbum… E o que dizer da estreia do Sambalanço Trio? Nele, tudo converge para resultar em música de primeira grandeza. Surgido no início de 1964, o combo paulistano, conterrâneo do pioneiro Zimbo Trio, reuniu uma trinca de craques, egressos de intermináveis jam-sessions nos inferninhos esfumaçados da boêmia do centro de São Paulo – realizadas em bares e boates como Baiuca, Cave, Jogral, Djalma’s e o lendário João Sebastião Bar. E foi justamente neste último que, desde a noite de inauguração da casa, o triângulo começou a ganhar formas precisas. Vértice de formação do Sambalanço Trio, Cesar Camargo Mariano iniciou tardiamente os estudos de piano, mas revelou-se prodigioso no mesmo dia em que ganhou seu primeiro instrumento, no aniversário de 13 anos. Seu pai, Miro, um modesto corretor de seguros, mas homem culto e professor de piano, literalmente enfartou ao descobrir que o menino, simplesmente por vê-lo lecionar, durante anos, saiu, de pronto, tocando o piano de parede. Kardecista, Miro acreditou que o filho pudesse ter “recebido” algum gênio ancestral da música. Estatelou no chão da sala e ficou internado por 48 dias.
A casa em que Cesar viveu com os pais era ponto de encontro de uma série de músicos, alunos ou não, que regularmente se reuniam para jam-sessions. Em momento de crise para conter o alcoolismo, Johnny Alf chegou a morar com os Mariano por oito anos, período em que Cesar, naturalmente, trocou figurinhas com o músico e reiterou suas convicções de tornar-se, como Alf, um grande pianista. Foi também em casa que o então adolescente conheceu o baixista Sabá, aluno de seu pai e futuro integrante do Jongo Trio, que apresentou a Cesar, tempos depois, o homem das quatro cordas do Sambalanço Trio, Humberto Clayber. Fechando a cozinha, de maneira inventiva e energética, Airto Moreira, jovem baterista catarinense que havia acabado de chegar a São Paulo, vindo de Curitiba, assumiu baquetas, pratos e tambores. Mantendo, por anos, dupla rotina profissional – era também funcionário de um banco – César atravessava a Rua Augusta, de bondinho, a caminho do centro da cidade, quatro, cinco vezes por semana, para tocar madrugada adentro, com o trio, dormir pouquíssimas horas e voltar ao batente na manhã seguinte.
Mas foi justamente essa rotina extenuante que deu ao grupo a enorme intimidade e a liberdade de improviso que estão patentes nos 12 temas incluídos no álbum de estreia do Sambalanço Trio. Entre as faixas, clássicos como Balanço Zona Sul, de Tito Madi, O Morro Não Tem Vez, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, os afro-sambas Berimbau e Consolação, de Vinicius e Baden Powell, e temas que anteciparam o grande compositor em que se tornou Cesar, como Marisa, Sambinha (esta, em parceria com Clayber) e o explosivo Samblues, que abre este disco obrigatório.
O Sambalanço Trio teve vida efêmera, durou menos de três anos, mas produziu muito. Deixou três álbuns, e deu auxílio luxuoso em obras de outros grandes artistas, como o trombonista Raulzinho (que depois passou a assinar Raul de Souza), o bailarino Lennie Dale (que fez dois álbuns com o grupo e formou, nos anos 1970, a anárquica trupe de dançarinos Dzi-Croquettes) e o compositor Geraldo Cunha (que também teve o álbum de estreia lançado pela Audio Fidelity).
Com o fim do grupo, Clayber foi tocar com Airto e Hermeto Pascoal, no Sambrasa Trio, e Cesar seguiu em busca de novas experiências musicais, para além do samba-jazz, com o Som Três. Formado por ele, o amigo Sabá e seu primo, o baterista Toninho Pinheiro, o Som Três (que certamente terá espaço aqui, caro leitor) teve uma série de álbuns autorais, mas tornou-se célebre ao ser banda de apoio de Wilson Simonal na fase da Pilantragem.
Radicado nos Estados Unidos desde o começo dos anos 1990, Cesar Camargo Mariano concedeu entrevista à Brasileiros (leia), por telefone, em setembro de 2011, ocasião em que lançou um imperdível livro de memórias. Na longa e aprazível conversa de mais de duas horas, o pianista comentou cinco álbuns essenciais de sua carreira. Lógico, o primeiro Sambalanço Trio encabeça a lista. Sobre o grupo, César disse: “O Sambalanço Trio nasceu por acaso. Foi ideia do baixista Humberto Clayber e um encontro inusitado. Não o conhecia bem, muito menos o baterista, Airto Moreira, recém-chegado do Paraná. Na minha cabeça de jazzista radical, a concepção de trios era baseada nos trios americanos de pianistas que eu admirava, como o Bill Evans e principalmente o Oscar Peterson, que escrevia arranjos para trios, a meu ver, muito próximos do samba. Clayber e Airto também eram fanáticos pelo Oscar e acho que essa identificação fez com que a coisa desse o maior pé.”
De fato, a coisa deu muito pé, como você, caro leitor, pode constatar ouvindo a íntegra do álbum.
Boas audições e até a próxima Quintessência!
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