Coluna_header_ topo Auro Danny Lecher

O Presidente da Casa abre o microfone para que os deputados declarem seus votos:

Em nome da Giardia lamblia e sua potente ventosa que se fixa no intestino delgado do hospedeiro com o nobre objetivo  de sugar-lhe o sangue, causando diarreia, vômitos e muita flatulência.

Em nome da Taenia solium que, solitária, chega a atingir vários metros de comprimento e aproveita por osmose o alimento já parcialmente digerido pelo hospedeiro.

Em nome dos 200 mil ovos que a fêmea dos Ascaris lumbricoides elimina por dia e que entalam na garganta e matam asfixiadas muitas crianças pobres, todos os dias, no Brasil.

Em nome dos Enterobius vermiculares, Oxiurus, lombriga que infesta o intestino da maioria das pessoas e que deposita seus ovos na região anal do hospedeiro, trazendo a nefasta consequência do irresistível prurido, que só passa, segundo testemunhas, coçando.

 "Em nome dos 200 mil ovos que a fêmea dos Ascaris lumbricoides elimina por dia e que entalam na garganta e matam asfixiadas muitas crianças pobres". Foto: Nilson Bastian/Fotos Públicas (17/04/2016)

“Em nome dos 200 mil ovos que a fêmea dos Ascaris lumbricoides elimina por dia e que entalam na garganta e matam asfixiadas muitas crianças pobres”. Foto: Nilson Bastian/Fotos Públicas (17/04/2016)

 

O tempo foi passando e eu tentava acompanhar os discursos entéricos que insistiam em misturar coisas da vida pública com a privada, mas, confesso, minha atenção flutuava. O inconveniente mantra levou-me a imaginar a democracia como uma trapezista caolha. Com improvável equilíbrio ela pendulava, pra lá e pra cá, a 10 metros de altura acima do plenário, exibindo seus 27 anos de idade e sua meia-calça cor de rosa, cuidadosamente remendada na região glútea. À esquerda.

Encantadora em seu figurino tremulante e seus longos cabelos morenos, não disfarçava entretanto o semblante de desolação, uma espécie de indignação deprimida, cujo tom era de lamento e não mais de reclamação. Era como se estivesse a perguntar:

Desço e danço um tango argentino, o que seria muito “bandeira”, ou continuo tentando fazer das minhas tripas coração?

Não tinha rede de proteção. E se tivesse, certamente remendada estaria.

Nota de falecimento

Morreu no dia 23 de abril, há 400 anos, Miguel de Cervantes Saavedra.

Ele  inaugurou o romance moderno quando publicou Dom Quixote, em dois tempos. A primeira parte em 1605 e a segunda, em 1615, um ano antes de morrer.

Após todas as peripécias, o anti-herói, irresistível protagonista, volta para casa, cura-se da loucura e morre.

A vida imita a arte.

O livro continua sendo um best-seller porque Dom Quixote parece nos fazer lembrar, através dos séculos, que o limbo é estreito e escorregadio, e que frequentemente borramos os limites  entre o sublime e o ridículo.

*Psiquiatra da Universidade Federal de São Paulo, psicoterapeuta e coordenador do Projeto Quixote   


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