Charlie et les Autres

Há muito Edward Said alertava para as generalizações culturais, em especial quando usadas para definir o mundo árabe. As reações à tragédia na redação do Charlie Hebdo mostraram em grande parte que essa questão ainda é central e muito mal resolvida.

Há dois dados cruciais em jogo, ambos injustificáveis. Um deles é a covardia do terror; outro, a islamofobia. Ambos estão relacionados, mas da pior maneira possível. Se os terroristas eram islâmicos, não representavam o islamismo e muito menos a grande maioria dos muçulmanos.

Fato é, que para resolver um problema, é preciso resolver o outro – e não botar mais lenha na fogueira. A extrema direita francesa, cujo cavalo de batalha é a xenofobia pura e simples, já botou as mangas e o resto do paletó de fora. Marine Le Pen está como pinto no lixo: alimenta-se do horror para insuflar ainda mais o ódio.

Uma reação violenta só vai recrudescer o fanatismo de ambos os lados. É evidente que a liberdade de expressão é desejada por todos, mas não são todos que têm acesso a ela. A maioria dos cidadãos muçulmanos de origem árabe na França  sofre com o preconceito e o frequente desrespeito aos direitos civis. Não tem meios para mostrar seus pontos de vista. Não sabemos realmente como são, o que pensam ou o que sentem. Não nos interessa, pois já temos a opinião formada (Ou talvez fosse melhor dizer opinião forjada).

Qual a porcentagem de islâmicos violentos? Mínima. Aos olhos ocidentais, no entanto, é gigantesca (tenebrosa, assustadora). Há pesquisas que mostram claramente essa distorção. E a quem serve essa visão? Lembra a discussão sobre a maioridade penal. Apenas 0,5% dos crimes de morte no Brasil são cometidos por menores de idade. É o suficiente para que peçam suas cabeças, indiscriminadamente.

Sou Charlie, sou Ahmed, sou Nigéria, sou muçulmano, sou judeu, sou ateu, sou opressor, sou oprimido. Sou a consulesa da França. Sou os mais de oitenta negros mortos por dia no Brasil. Mas com liberdade. Estou aqui, falando o que penso porque tenho esse espaço. Defendo o Charlie, apesar de execrar algumas das charges do semanário (há coisas de péssimo gosto, racistas, sexistas, xenofóbicas etc). Defendo a inserção real dos imigrantes árabes e africanos nos países europeus. Defendo a divisão de Israel em dois Estados. Defendo a denúncia das práticas terroristas também do lado ocidental, especialmente dos EUA. Defendo que as periferias tenham o mesmo tratamento dispensado aos centros. É pedir muito? Não me parece. Basta boa vontade. E bom senso.

E agora? Não podemos trazer o Wolinski (que eu tanto li e admirei) e seus colegas de volta, ou o bravo guarda Ahmed, ou o não menos corajoso Yohan Cohen. Mas podíamos trazer de volta a capacidade de compreender o diferente, a capacidade de não se prender a uma visão de dominância, de entender as diversas culturas que fazem do mundo um planeta rico – um planeta que, se realmente quisermos, ainda pode ser pacífico.


Comentários

Uma resposta para “Charlie et les Autres”

  1. Avatar de Antonio Eduardo Ferreira Martins
    Antonio Eduardo Ferreira Martins

    Parabéns Daniel Benevides, pelo comentário desapaixonado e sensato.

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