Quando a foto do menino sírio, com a cara emborcada na água, foi veiculada mundo afora, houve até uma discussão se era pertinente essa exposição. A conclusão, afinal, foi de que a imagem causaria tal impacto que sensibilizaria as pessoas para o drama – a tragédia – dos refugiados na Europa e em todo o planeta.
Foi o que aconteceu. Por alguns meses. Bastou que alguns refugiados se envolvessem num episódio lamentável de violência contra mulheres na Alemanha, na virada do ano, para que os ânimos mudassem. A ponto de o Charlie Hebdo, pouco depois de completado um ano do atentado sofrido, que matou parte de sua redação, se sentir livre para pisar no menino afogado com um humor de chumbo.
O mau gosto, a crueldade e a burrice da charge que estampou sua última capa são impressionantes. Riss, o autor do desenho que mostra a famosa imagem do menino, com o texto “e se ele tivesse sobrevivido?”, seguido de um sujeito simiesco perseguindo mulheres, é o atual diretor do Charlie. Ele foi um dos alvejados no atentado que matou seus colegas. Saiu gravemente ferido. Conhece a força do ódio no próprio corpo. Como pode não imaginar o que sentiram, ao ver aquela capa, as pessoas próximas ao menino, e todos os refugiados, sírios ou não, que também perderam e perdem seus filhos atravessando mares e desertos pouco amistosos?
Parece um ato calculado de retaliação. E talvez seja. Mas o maior crime é a generalização. Colocar a etiqueta de estuprador nos refugiados é muita irresponsabilidade, no mínimo. O gesto aproxima o Charlie, um veículo que já foi progressista, da xenofobia da Frente Nacional.
E por que não houve mais discussão sobre isso? Existe claramente uma anestesia seletiva: se a gozação é com o sofrimento de ocidentais, seria um escândalo, já tirar sarro de asiáticos e africanos é atitude tratada com leniência, quando não indiferença ou pior, escárnio. O que aconteceria, por exemplo, se o Charlie fizesse uma charge ridicularizando as vítimas do 11 de setembro? Fechavam o jornal.
Bom mesmo foi ver a rainha da Jordânia responder aos falsos humoristas com um desenho mostrando o futuro roubado da criança síria: ela cresceria, iria para a escola e se formaria em medicina para ajudar outras pessoas. Desconfio que alguns amigos cínicos vão achar que a bela monarca foi sentimental ou não teve senso de humor. Podem me chamar de idealista ou ingênuo, mas o que tenho a dizer é simples, algo que aprendi desde cedo com meus pais: 1) não se bate nos mais fracos; 2) nunca podemos desistir da luta por um mundo melhor.
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