Quando soube da morte de Nadine Gordimer fui à casa de meus pais. Não exatamente nessa ordem, como causa e consequência. Mas de certa forma senti uma urgência de ir lá. Sabia o quanto minha mãe gostava e gosta dela. Queria fuçar nas estantes e ver o que poderia achar.
Eu e minha mãe sempre tivemos essa liberdade – mais eu, para ser sincero, por conta dos almoços de domingo. Chego lá e, mesmo sabendo de cor o que tem, gosto de ver as lombadas, de tirar um ou outro livro para folhear e às vezes levar alguns para casa. Deixo muitos livros meus lá também, ou por achar que ela vai se interessar, ou por falta de espaço ou para que ela doe para as escolas do MST.
Não preciso dizer que devo muito da minha formação literária e intelectual à ela e também a meu pai, ambos professores da USP – ela socióloga, ele astrônomo. Sempre conversamos sobre livros, de todos os tipos: policiais, clássicos, de filosofia, de divulgação científica, de história…Uma pergunta frequente nos almoços entre todos nós, meus irmãos, parentes e amigos também, sempre foi: “o que você está lendo?”
Não foram poucas as vezes que minha mãe respondeu Nadine Gordimer. O que sempre fez um sentido maior do que o simples fato, para mim. Essencialmente por dois motivos: Um, porque, ao contrário de mim, normalmente mais afeito aos autores estranhos, experimentais, contemporâneos, ela gosta mais do estilo realista do século 19, de histórias com começo, meio e fim, profundidade psicológica e reflexões sobre a condição humana. E os romances de Nadine Gordimer são assim. Dois, porque a autora sul-africana, prêmio Nobel de 1991, era também uma grande ativista pelos direitos humanos, em sua luta corajosa contra o apartheid – tema, aliás, de alguns de seus principais livros.
Sempre associei as duas por isso: a excelência na escrita, a clareza de raciocínio e a defesa incondicional dos oprimidos. Gordimer tem mesmo um ar digno, de firmeza moral e postura elegante de intransigência com relação a qualquer tipo de violência, estupidez, covardia, opressão, injustiça, que me faz lembrar, não apenas minha mãe, como suas irmãs e minha avó. Uma intransigência que ela, conhecida por seus livros sobre JK, UDN, direitos humanos, participação popular e outros, além da militância política e da luta na ditadura como integrante da Comissão de Justiça e Paz (sim, tenho muito orgulho dela!), sempre tentou nos incutir, sem nenhum tipo de pressão, mas pelos simples exemplos que víamos e admirávamos e pela prontidão em nos explicar pacientemente os caminhos tortuosos da história, da política, das ações infelizes dos homens. (É muito difícil falar desses assuntos sem soar um pouco solene, mas faço questão de dizer que, com todo esse rigor ético, minha mãe, a Maria Victoria de Mesquita Benevides, Dona Vitória ou Titô que muitos conhecem, nunca deixou de ter um finíssimo senso de humor).
George Steiner certa vez definiu o intelectual como aquele que lê com um lápis na mão. Esse é um aspecto que adoro nos livros que formam a extensa biblioteca materna: são todos anotados! E ler um livro anotado coresponde a manter um diálogo múltiplo, entre você, leitor, os leitores anteriores e o autor (e, muitas vezes, num jogo infinito de espelhos, os escritores que influenciaram aquele autor). Mamãe chegou ao ponto de, a partir de suas anotações, produzir uma versão resumida do Casa Grande e Senzala para seus alunos, o que achei sensacional. (Eu também anoto; nem consigo ler de outra forma. Não tenho nenhum pudor de riscar, amassar, levar o livro para a praia etc. Acho que livro bom é livro lido, relido e emprestado ou dado).
Voltando a Gordimer, que morreu no último dia 13. Achei apenas dois livros dela (com certeza há outros, nas muitas pilhas que tomam os cantos do apartamento de meus pais): A Arma da Casa e De Volta à Vida. O primeiro, especialmente, tem anotações fortes, que falam muito ao mundo de hoje. Como essa abaixo, que ela marcou, com bastante ênfase:
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