Não li e não pretendo ler a autobiografia de Adolf Hitler, motivo de tanta polêmica recentemente. Mas sou contrário à sua proibição, ainda que a considere moralmente compreensível.
Um dos meus motivos é que tal atitude faz lembrar a truculência do próprio regime nazista inspirado nas páginas de Mein Kampf, que promovia fogueiras ideológicas, queimando livros em praça pública.
Outro dos motivos é que o mundo mudou. Hoje, há uma conscientização muito mais difundida e aceita da importância dos direitos humanos e da luta contra qualquer tipo de intolerância. Um contexto bem diferente da Europa dos anos 1930, quando o futuro führer publicou sua obra odiosa. (Uma Europa, de resto, que permitiu a ascensão do nazismo, porque era, em boa parte, tão antissemita quanto os seguidores de Hitler).
O fato de que, ainda assim, a Europa de hoje tenha revelado doses cavalares de intolerância, notadamente contra muçulmanos e refugiados de países pobres e/ou em conflito, só mostra que a publicação ou não de Minha Luta nada tem a ver com a escalada espontânea de novos fascismos (mas sim com o medo e egoísmo típicos de grandes parcelas da população).
Além do que, o conteúdo do livro (que, dizem, é ridículo como proposição teórica e pessimamente escrito) sempre esteve disponível na internet para quem quisesse consultar. Os poucos idiotas que mantêm sua memória concretamente viva, usando uniformes, suásticas e gritando palavras de ódio, formam uma triste exceção, e devem ser combatidos e julgados por seus atos, não por suas leituras.
Tenho, ainda, uma razão mais “psicanalítica” para ser contra a proibição: da mesma forma que mergulhamos fundo nas sombras da nossa psique quando nos submetemos aos rituais criados por Freud, acho que devemos ter a coragem e a disposição crítica de olhar para o lado detestável da humanidade. Considerar que Hitler era um monstro e que, portanto, seu livro é algo monstruoso, é, em última análise, varrer para baixo do tapete a capacidade que nós, seres humanos, temos de promover o horror. E ignorar, por exemplo, que a tortura é praticada diariamente nas delegacias brasileiras. Ou ignorar a quantidade de civis mortos nas incursões bélicas de Estados Unidos, Rússia e aliados. E por aí vai. (Aliás, é provável que se publiquem livros que, nos dias atuais, produzam efeito ainda mais pernicioso que Mein Kampf).
A história está aí para não repetirmos os mesmos erros, não para reproduzi-los estupidamente.
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