Armandinho é uma tirinha criada por Alexandre Beck no jornal Diário Catarinense. Você deve conhecer o quadrinho, já são seis coletâneas de tiras editadas e quase 730 mil likes no Facebook. Certo?
Curitiba, dia 28 :)https://www.facebook.com/events/1664240887132878
Posted by Armandinho on Sunday, May 17, 2015
Com tamanho alcance, tem quem goste e tem quem deteste o garotinho que sempre tem uma resposta pronta para diversas situações e geralmente sempre se comporta de maneira politicamente correta.
Tom Magalhães, mestrando em Direito pela UFRJ, é da turma que não é muito fã do menino. O que irrita ele nem é o conteúdo das tiras. Em muitas situações, Tom concorda com Armandinho, mas acha o moleque irritante demais desde a primeira vez que o viu.
Por conta disso, decidiu criar a página Armandinho morrendo violentamente para postar paródias onde o menino sempre morre após sua tirada final.
Em menos de dois dias, a página se espalhou rápido e ganhou 6 mil seguidores, chamando atenção de quem entendeu a piada como o criador da página queria e de gente que via na página uma “resposta da direita” para o quadrinho, sempre associado a uma postura progressista e de esquerda. A confusão estava armada.
No pouco tempo que a página existiu, Tom chegou a esclarecer o assunto em um post.
Muita gente tá interpretando essa página como se fosse contra o Armandinho por ele ser “de esquerda” ou “comunista” ou por ser a favor dos direitos humanos, do feminismo, ou o caramba a quatro, e portanto como uma página “de direita”.
A interpretação é livre, e o texto quando cai na rede é peixe, pra ser interpretado da forma que for interpretado.
Mas queria deixar claro que nossa opinião é que essa interpretação é burra, porque o fato de o armandinho ser irritante não tem nada a ver com uma ou outra posição política estar certa ou errada.
Será que interpretar isso aqui como outra pregação, só que de uma ideologia oposta, não é meio babaca?
Mas a brincadeira só acabou quando o próprio autor da tirinha original, Alexandre Beck, apareceu com uma notificação extrajudicial, chegando a falar com Tom por telefone ontem. No mesmo dia, o criador da paródia decidiu tirar a página Armandinho morrendo violentamente do ar.
Em entrevista para o blog, ele explicou a decisão: “O autor me disse, por telefone, que a paródia o tinha incomodado bastante porque expressaria, segundo ele, valores opostos aos do original, e usaria o personagem dele para pregar a violência. Não concordo com essa interpretação, mas também não me sinto confortável de ferir os sentimentos do cara, se a interpretação dele é diferente. Esse é um dos motivos pelos quais já não me senti mais à vontade para seguir administrando a página pessoalmente”.
Na página oficial do Armandinho no Facebook, muita gente foi reclamar da postura de Beck por fazer a notificação extrajudicial. No Twitter, mais pessoas também reclamaram da pressão feita contra a página. Muitos dos órfãos, inclusive, agora estão criando suas próprias paródias, extrapolando de longe a ideia original em alguns casos. Páginas, como a Pentelho.burro, armazenam essa produção.
Para entender todo os detalhes do caso e levantar o debate, conversamos com o autor da paródia. Leia a íntegra. (Procurado pelo blog em seus canais oficiais, o autor Alexandre Beck não deu retorno até a publicação do post).
Brasileiros – Quando e por qual razão você decidiu criar a página, é uma ideia só sua?
Tom Magalhães – Bom, eu tinha a ideia de matar esse personagem, em diferentes graus de consciência, já há algum tempo – provavelmente desde a primeira vez que eu vi a tirinha. A decisão de criar a página é de anteontem, e foi por procrastinação. Estou preparando o material pra minha qualificação de Mestrado (o tema é, veja só, a relação entre direito, linguagem e violência), e acho que queria alguma coisa pra desviar minha atenção de vez em quando.
Mas eu não diria que a ideia é minha, por dois motivos. O primeiro é que, como ficou claro pra mim pela reação do pessoal que curtiu a página, a ideia já estava na cabeça de muita gente. A vontade de que o personagem morresse no final das tirinhas, a imaginação da morte dele, já se faziam presentes pra uma parte dos leitores fortuitos do original — acho que por motivos que se relacionam principalmente a concepções diferentes de humor e de arte, que podem gerar emoções fortes.
Então eu só criei a página, e o fato de ela ter tido tanta adesão me parece ser porque a ideia já estava no “inconsciente coletivo”. Inclusive, tenho que concordar com o que o criador da tirinha me disse, que a página só cresceu tão rápido por causa da fama do personagem, ainda que seja, digamos, a partir do negativo dessa fama. O segundo motivo pelo qual eu não me sinto dono da ideia é que eu não desenho as tirinhas, embora tenha chamado o artista – que até o momento quis permanecer anônimo – e feito a sugestão. Assim, a maioria das decisões específicas sobre a forma como o personagem morre – que incluem as principais decisões estéticas e humorísticas que dão o valor do negócio – são dele.
A ideia, então, não é minha nem numa ponta, nem na outra. Eu só a pus em funcionamento e assumi, assim, a responsabilidade, já que, embora meu nome não aparecesse na página, se o caso fosse levado a juízo seria eu o responsável.
Com a página no ar ainda, muita gente a classificou como humor negro ou mesmo uma página de direita, esse não era bem seu objetivo, certo?
Acho difícil dizer que não seja humor negro quando se trata de rir da morte e da violência. Não tenho nada contra humor negro, embora existam versões nada a ver dele. O pessoal de direita, dessa nova direita burra que infelizmente tá crescendo no país – e que é, inclusive, responsável por boa parte do humor negro nada a ver que tem sido produzido – é que me incomoda. Teve um pessoal que identificava o personagem como “de esquerda” e, só por isso, viu a paródia como passando uma mensagem “de direita”. A interpretação é livre quando o negócio cai na rede, é claro. Mas acho, como interpretação, pouco inteligente.
O personagem é irritante (pra mim, pelo menos) porque passa didaticamente uma mensagem. Daí você vê a paródia como passando didaticamente a mensagem contrária? Por exemplo, de que esquerdistas chatos têm que morrer. Me parece que o cara que interpreta assim não tá entendendo nada. Como disse, inclusive, um dos seguidores da página, eu compartilho a maioria das posições que o personagem expressa. Isso não me impede de querer ver ele morrendo, porque o irritante não é o que ele diz e sim a forma e o momento em que ele o diz. Não tem nada a ver com a mensagem, e inclusive questiona a relação entre humor e mensagem. Acho que foi o Woody Allen que disse algo assim: “Me perguntaram qual a mensagem dos meus filmes; eu disse que fiz um trato com os correios — eles passam as mensagens, eu faço os filmes”.
Acho que o negócio é, então, antes de mais nada fruto de um abismo entre a nossa (minha, de quem curtiu a página) concepção de humor e de arte e a que é assumida pela tirinha parodiada. Não é uma divergência política, a não ser na medida em que concepções de humor e de arte têm consequência política. Eu, particularmente, acho que a função do humor e da arte está em um jogo mais complexo e delicado do que simplesmente transmitir um conteúdo específico. Tem outras formas de usar a linguagem que servem melhor à transmissão de mensagens.
Daí que quem interpreta o negócio como um embate entre coxinhas e petralhas, esses dois lados que, infelizmente, estão tomando e emburrecendo todas as discussões no Brasil, não me parece entender muito de piada nem de arte. Mas não dá pra esperar muito humor e senso estético de quem afina com o Bolsonaro, né?
Você esperava que o autor mandasse tão cedo um pedido para que o trabalho fosse interrompido? O que você achou dessa atitude?
Queria esclarecer que, no fim das contas, o autor disse que nunca tinha tido a intenção de acionar a justiça nem de tirar a página de circulação, embora a primeira mensagem que ele me mandou dissesse “aguardo imediata retirada de todo trabalho de minha autoria […] ou irei acionar os meios cabíveis para os devidos reparos financeiros”. Inicialmente, nem pensei que a coisa fosse crescer ao ponto de ele entrar em contato conosco, ao ponto de envolver a pessoa dele, pra além da tirinha, pessoalmente. E, mesmo que fosse o caso, achei que ele deixaria rolar, por vários motivos.
Primeiro porque esse negócio de paródia, remix, etc., para mim hoje já é lugar comum. Depois porque as tirinhas do cara expressam bem diretamente uma visão progressista, de tolerância e que costuma, no espectro político, vir acompanhada de uma liberação maior desse tipo de prática, até de um certo entusiasmo diante das possibilidades recombinatórias da rede livre.
Mas o autor me disse, por telefone, que a paródia o tinha incomodado bastante porque expressaria, segundo ele, valores opostos aos do original, e usaria o personagem dele para pregar a violência. Como já disse, não concordo com essa interpretação, mas também não me sinto confortável de ferir os sentimentos do cara, se a interpretação dele é diferente. Esse é um dos motivos pelos quais já não me senti mais à vontade para seguir administrando a página pessoalmente. Prefiro deixar que a coisa tenha uma dimensão difusa do que que vire uma coisa minha contra ele, afinal não tenho nada pessoal contra o cara.
O autor afirmou que se tratava de uma questão mais de direitos autorais do que uma represália ao conteúdo, correto? Você citou um trecho da lei que permitira algo dentro da linha do projeto, mas optou por tirar a página do ar. Por que tomou essa decisão?
Não foi bem isso. Na notificação inicial que ele mandou à página, ele falava em “uso comercial” e indicava responsabilidade criminal. Depois, quando conversamos por telefone, me pareceu que o que incomodava ele mais era o conteúdo. Mesmo sabendo que não havia fins lucrativos, ele se sentia incomodado, como disse, porque via ali uma mensagem oposta às ideias dele. São, é claro, duas coisas diferentes. Uma coisa é que você tem o direito, segundo a lei brasileira, de não permitir uma paródia quando ela não é facilmente discernível da obra original, ou quando a coloca em excessivo descrédito. Na minha opinião nenhuma das duas coisas é o caso, mas isso é debatível.
Outra coisa é você não querer que o treco vá contra as suas ideias. Isso a lei não prevê, é claro, porque seria contrário à liberdade de expressão exercida através da paródia, que não precisa pedir autorização ao criador do original para existir, muito menos concordar com as ideias dele. Acho o sentimento de ficar ofendido com uma paródia antidemocrático, se é que um sentimento pode ser antidemocrático, mas acho que isso é da conta do autor, e não da minha.
Tomei a decisão de tirar a página do ar, então, por conta desse conflito pessoal que acabou aparecendo e que não quero ter, e também por conta da questão jurídica. Mesmo que esclarecida pelo autor a ausência de intenção de processo, a possibilidade fica lá, de alguma forma, no background, e não quero ter que pensar nisso. É claro que, se fosse uma questão muito importante pra mim, daria pra levar isso adiante.
Mas acabei achando, no fim das contas, que o fim da página pode ser mais interessante que a sua continuidade. Afinal, trata-se de uma piada única. Ela se repete com variantes, mas não me parece que tivesse potencial pra continuar, no mesmo formato linear e unificado, por muito tempo, sem perder a graça e decair. Acho que, com a mobilização que se gerou na rede, as possibilidades criativas são muito mais interessantes.
O pessoal que se conheceu através da página criou um grupo onde estão sendo criadas muitas coisas, algumas ao meu ver muito interessantes. Há muita coisa escrota, também, mas isso faz parte. Essa produção disseminada, horizontal me parece bem mais interessante. É o Freakazoid, a força criativa incontrolável da internet, que pode fazer tanto coisas sensacionais quanto as piores merdas. Isso aí, então, já não é mais conosco. Até porque, conhecendo o artista que fez as paródias, não sei por quanto tempo ele se interessaria por manter esse projeto. Acho que rapidamente enjoaria. Ele gostou, certamente, de fazer as tirinhas, mas está totalmente alheio a toda a polêmica que está rolando.
Quando eu disse a ele que a página sairia do ar, mas que tinha adicionado ele ao grupo privado, ele nem foi olhar o que estava acontecendo, e me respondeu com uma frase sensacional: cool guys don’t look at explosions. Caras legais não olham para explosões.
Que discussão você espera que surja do caso? Muita gente já anda espalhando o material e produzido coisas semelhantes em outros lugares.
Eu, ao contrário do cara que não olha para explosões, me interesso muito pelo debate que surge do negócio. Ele levanta vários temas que me interessam — paródia e liberdade de expressão; funções do humor e da arte; interpretação da arte e das leis; direito e justiça. Um amigo meu que é especialista em direito autoral, disse que se esse caso fosse à justiça provavelmente seria discutido em congressos acadêmicos (como o caso da “Falha de São Paulo”, por exemplo). Isso é porque ele fica no limiar da interpretação da lei, isto é, naquele espaço em que, pelo texto, não dá pra saber de antemão qual a interpretação correta.
A discussão se a paródia é legítima ou não dá muito pano pra manga. Ela reproduzia 100% do original, mas ao mesmo tempo era facilmente distinguível dele. Ela era, certamente, violenta contra o original, como toda paródia em alguma medida é, mas é discutível que grau de desabono ao original justifica a supressão de uma paródia, afinal as paródias têm que existir e elas estão aí pra complicar. Seria preciso uma desvalorização muito grave do original pra justificar a supressão, mas isso é bem “subjetivo”. Acho que esses casos limítrofes são importantes porque levantam a discussão, tanto a discussão do direito quanto a da arte, a do humor, etc.
Acho que essa bola foi levantada e ainda vai quicar um pouco, e isso é ótimo, ainda que, evidentemente, saia do controle de qualquer pessoa ou entidade específica. Teve gente oferecendo espaço para publicação, uma página de “jovens de direita”. Um pessoal que faz uma paródia muito ruim do Latuff (que, em si mesmo, já é da turma do cartum com mensagem, mas pelo menos o faz muito bem) prestou uma homenagem à página que achei totalmente equivocada, porque era tão didática e sem graça quanto aquilo que pretendia criticar.
Muita gente tá instrumentalizando o negócio, então, dessa forma nada a ver e ainda por cima com uma mensagem escrota. Mas isso faz parte do jogo. Tem muita gente fazendo coisa interessante também, e tanto as coisas boas quanto as ruins levantam questões.
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Quer ler mais sobre o assunto? Vale passar pelo post de Marcel R Goto, que chegou a receber uma resposta de Alexandre Beck sobre a página.
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