Os múltiplos e súbitos intérpretes da crise brasileira se viram diante da dificuldade de ler um processo que é ao mesmo tempo institucional e popular, político e jurídico, cultural e econômico. Isto é de certa forma esperado, pois em situações de crise precisamos de um ponto de vista geral sobre as coisas, uma vez que é próprio e definição do que é uma crise, nos fazer perguntar do que algo é feito, sua substância, razão ou causa. Neste ponto, ainda que por motivos diferentes, tivemos que pagar a conta por uma espécie de hiato na reflexão sobre a brasilidade.
Um hiato que tocou tanto daqueles que atuam nos meios de administração e governança do país, como políticos e economistas, quanto para aqueles que trabalham para a leitura e compreensão de nossa realidade, como acadêmicos e teóricos. Até o golpe civil-militar de 1964 o Brasil cultivou uma tradição de reflexão sobre si mesmo expressa na Teoria da Literatura por Antônio Candido, na Sociologia por Gilberto Freire, por Sérgio Buarque de Holanda na História, por Caio Prado Jr. na Economia, pelos modernistas dos anos 1930 e as neovanguardas dos anos 1960 nas Artes e na Arquitetura. Esta discussão, que às vezes se confundia com um questionamento sobre a identidade brasileira e com o caráter nacional, envolvendo nosso lugar central ou periférico no concerto das nações. Nela a psicanálise ocupava um lugar transversal entre as diferentes disciplinas em formação.
Esta discussão foi suspensa pelo golpe de 1964 e substituída por uma narrativa de Estado, compulsória, definindo a natureza, a ordem e o ritmo do que seria o projeto nacional e desenvolvimento. A discussão anterior foi interrompida para jamais ser propriamente reintegrada, a não ser de forma esporádica e um tanto assistemática, por exemplo, pelo cinema da retomada. No ínterim a universidade ganhou outros contornos, a pós-graduação, com sua exigência de segmentação e especialização foi definitivamente implantada no País e os nosso embrionários think tanks, como o Iseb[1], o Dieese[2] e o Cebrap[3] instrumentalizaram-se como órgãos produtores de dados, mais do que voltados a interpretações de conjunto.
Isso explicaria algumas coisas sobre a crise atual. Por exemplo, porque os comunistas vermelhos são desenterrados como inimigos da pátria, em um contexto no qual o governo jamais agiu, no plano econômico, segundo o que se entendia por comunismo, nos anos 1970, ou seja, estatização de bancos, reforma agrária maciça e generalizada e controle direto da economia. Como ressaltou Paulo Arantes, a esquerda começou a se caracterizar cada vez mais como defesa do social, das minorias, das pautas sobre desigualdade real na educação, na produção cultural e nos direitos humanos. Com exceção dos programas de renda mínima, que são praticados por governos liberais mundo afora, a intervenção na economia privilegiou o plano normativo: agências de regulação, tributação crescentemente complexa e leis instrumentalizáveis por seus agenciadores.
Outro aspecto interessante deste retorno do recalcado é a volta de um dos temas mais cruciais da retórica nacionalista: a família, a moral e sua aliança divina. É do compromisso mal resolvido entre a família e o estado, entre o público e o privado que se produz colapso crônico de nossos dispositivos liberais de individualização. Esta é a gramática básica da corrupção, não só em nosso país. Esta foi também a retórica explícita nas declarações de voto no momento do afastamento da presidente na Câmara: minha família, minha cidade, meu Deus. Uma origem pura, como a minha, é a única coisa capaz de se opor à corrupção. Ocorre que este é o princípio anti-republicano, que cria a corrupção como forma de vida e prática de governo, baseada na extensão da família e da lógica privada ao universo público e institucional. Não é uma disputa sobre qual é a lei, mas sobre quem manda na lei. O diagnóstico e a mobilização popular em torno da corrupção revela a continuação de uma mesma racionalidade, mas que não é reconhecida como tal em função do hiato, em função de uma espécie de recalque histórico.
Para a psicanálise quando algo é negado, não admitido ou não elaborado isso volta. E o que é negado no simbólico volta no simbólico, mas o que não foi simbolicamente reconhecido no simbólico volta no real. Este retorno do simbólico é chamado de sintoma enquanto o que retorna no real é chamado de trauma. Nesta situação fazer a história deixada para trás é uma boa medida, ainda que preparatória e insuficiente. Mais além dos sintomas de ressentimento social é preciso tratar sua causa real, é preciso um ato que o reconheça e insira na lógica de sua própria repetição.
Por isso entendo que a atual crise tem por pressuposto e condição um sintoma social a que chamo de vida em forma de condomínio[4]. Resumidamente: em vez de espaço público, incorporação imobiliária; em vez de representantes orientados para fins coletivos, síndicos e gestores interessados apenas na eficácia dos meios; em vez de leis, regulamentos feitos às pressas conforme as contingências; em vez de diferença e negociação social, muros de segregação; em vez de afetos sociais como a culpa e a vergonha, a soberania política baseada no medo e na segurança. Ou seja, trata-se de uma forma de vida que é um sintoma deste hiato histórico. Ela se exprime na arquitetura, mas também na circulação urbana, nas trocas sociais, na vida no trabalho, como uma espécie de estrutura. Tal forma de vida se repete de forma variante nas experiências das prisões, das favelas, dos Shoppings Centers e obviamente nos condomínios. Ela se repete nos condomínios de saúde, de educação, de cultura e obviamente no condomínio armado pelo governo com os diferentes extratos da sociedade civil e principalmente com agentes econômicos.
Mas além da insuficiência deste sintoma, nossa crise atual expressa um retorno no real. Um retorno do traumático, seja pelo acasalamento entre empresas-famílias e partidos-igrejas, seja pela violência que suspendeu a palavra e anulou a possibilidade de que os oponentes se reconhecessem como adversários. Quando isso acontece o outro é destituído da condição de sujeito, ele se torna coxinha ou petralha, louco ou sem caráter, ou seja, no fundo figuras daquele com quem é impossível senão indesejável conversar. Não se reconhece mais pessoas, mas grupos falantes, mesmo os indivíduos funcionam como massas ecoando vozes anônimas. Este é um traço da segregação no real. E o real aqui tem dois nomes: o antagonismo social, que se torna “inomeado” e a diferença de classe, que se torna intratável. Ora, uma das características do real é que ele não faz unidade. Ele acentua os conflitos simbólicos e as oposições imaginárias. Isso fica perfeitamente claro quando não conseguimos qualificar a crise como econômica, política, moral ou social. Ela não é assunto qualificado, nem de juristas nem de politicólogos, nem de economistas. Ela é crise porque expressa e acentua a tensão que envolve e separa estes discursos. Por isso ela aparecerá, ao seu final, como indeterminação de limites e poderes entre judiciário, legislativo e executivo. Há uma única força que se pretende e se apresenta como capaz de pensar a soma dos sistemas simbólicos, dando-lhe unidade e sentido: a teologia. É por isso que a crise faz reaparecer a força da teologia política em nosso país. Esta é a ideologia mais antiga e mais persistente em nossa educação, em nossa filosofia da história em nossa teoria cultural.
Aqui temos que nos arrepender amargamente por ter suspenso nossos esforços e estudos globais sobre a brasilidade. Talvez seja por isso também que a psicanálise, que estava lá presente nas reflexões seminais sobre o Brasil, retorne agora, ao lado de outras tantos esforços teóricos, quase que em regime de emergência. Afinal é assim que se poderia caracterizar o pensamento crítico, não apenas como alinhado e reduzido ao programa marxista, mas ao conjunto de reflexões surgidas para nos ajudar a suportar um mundo em rarefação de sentido e uma modalidade de subjetivação pós-teológica.
Assumindo-se esta montagem como nosso problema de base, a discussão sobre os diferentes tipos de igualitarismo, radical, liberal ou neoliberal, torna-se supérflua. No fundo todos estão em luta para instrumentalizar o Estado como principal player econômico do país. Privatizar ou estatizar tornam-se medidas simétricas e falsas questões. Reimplantar um hiper-desenvolvimentismo e uma nova abertura dos portos, rever nossa política fiscal, tributária, trabalhista, eleitoral, sempre foram plataformas tão desejáveis quanto temidas porque dependentes de sua instrumentalização condominial.
Desde a antiguidade a tirania era um regime político aceitável em situações de crise, decorrentes da devassidão dos governantes, guerra ou a epidemia. Sabia-se que nestas situações o poder concentrado ganha em agilidade o que perde em legitimidade. Os golpes também tem história, eles mudam sua forma e função conforme a sua lógica de produção. Tragédias sociais também se renovam. A tirania grega não é a mesma que o governo de Kim Jong–un, ou que o fracassado “putsch” de Hitler em 1923. Os golpes ostensivos rodeados de conspirações e interesses internacionais deram lugar ao tipo de golpe que se deve esperar em tempos de neoliberalismo: livre empreendimento de um grupo interessado no poder, manipulação das leis por exageração ou flexibilização contextual, punição seletiva consoante a resultados, criação retrospectiva de razões “práticas” autojustificadoras, cinismo ostensivo das motivações e propósitos. E o golpe é o retorno no real do que não conseguimos simbolizar durante esses anos todos. Por isso ele soa tão perfeitamente repetitivo como o golpe que originou a República, o golpe que levou Getúlio Vargas ao poder e o Golpe de 1964. Todos eles praticados em nome da Constituição.
[1] Instituto Superior de Estudos Brasileiros, fundado em 1955.
[2] Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio Econômicos, fundado em 1955.
[3] Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, fundado em 1969.
[4] Dunker, C.I.L. (2015) Mal-Estar, Sofrimento e Sintoma. São Paulo: Boitempo.
*Professor titular em Psicanálise e Psicopatologia Clínica do Instituto de Psicologia da USP
Em 2012, o psicanalista ganhou o Prêmio Jabuti de melhor livro em Psicologia e Psicanálise com a obra Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica. Foi entrevistado pela Revista Brasileiros na edição de abril de 2015, por ocasião do lançamento do livro Mal-Estar, Sofrimento e Sintoma – Uma Psicopatologia do Brasil entre Muros. Publicou ainda, na Brasileiros, os artigos Hipótese sobre o Brasil, em agosto de 2015, e A divina família brasileira, em maio de 2016. Agora passa a colaborar mensalmente como colunista no nosso site.
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