Aproveito a campanha #AgoraÉQueSãoElas, em que colunistas homens cedem seus espaços para colegas mulheres se expressarem, para apresentar-lhes o comovente depoimento de Lilith, a primeira mulher de Adão:
“Faço desta coluna uma oportunidade de desabafo. Posso estar um pouco destreinada porque a última vez em que me expressei por escrito já faz muito tempo, por ocasião do Alfabeto de Ben Sira, destinado a Nabucodonosor.
Se o tom for ressentido ou até tormentoso, peço a compreensão dos leitores, dada minha dramática situação de exilada.
Fui expulsa do Paraíso por ter me rebelado contra o sistema de dominação patriarcal. Sou feita, como Adão, à imagem e semelhança de Deus, da mesma terra e sopro em nossas narinas, o fôlego da vida.
Se recuso a obrigação de ficar sempre por baixo nas minhas relações sexuais, não é por uma questão de dominação ou competência, mas de equidistância. E prazer, sobretudo pelo prazer.
Se uso perfume ou seda é em nome da tentação e do desejo. Sou vagina dentada que mancha de sangue o sêmem de meus amantes. Se os mato é para ceder lugar ao próximo, que ainda não me conhece. Se mordo minha carne enquanto me masturbo é porque gosto de comprovar a eficácia do espanto.
Misturo as cartas do que é sensual, erótico e pornográfico.
Por isso fui punida. Fugi do Jardim do Eden. Amaldiçoada a parir filhos grotescos, como vingança, poderia povoar o inferno transando com Samael, e montar guarda em cima de Cérbero nas portas do Inferno.
Não foi esta a minha opção, apesar de hesitação contínua.
Tentei Adão com o veneno do adultério e a sensualidade de meus seios brancos e olhos de mel. Jurei-lhe curar sua costela além do meu eterno amor, sob a única condição de que fosse respeitada minha autonomia e independência, ou então, fugir novamente para cair dessa vez no calabouço do esquecimento.
Recebi como resposta o exílio.
Restou-me, além da resignação e da fama de guardiã do abismo, dos ventos e tempestades, um prêmio de consolação. Sou Deusa do lado obscuro da Lua, da sua face oculta, aquela que nunca foi vista por ninguém, com excessão dos astronautas que souberam, até agora, guardar o meu segredo.
Renunciei à maternidade para tornar-me imortal, condenando-me à solidão desta escolha.
Se não fosse por esta minha militância, provavelmente não existiria a luta contra os estupros, apedrejamentos, violência doméstica, diferença salarial. Tampouco esta campanha e esta coluna existiriam.
Como julgar sempre foi e continuará sendo mais fácil do que entender, não poderia terminar meu grave relato sem agradecer ao responsável por este espaço, Auro Danny Lescher (de quem sou assídua leitora), pela generosidade e audácia ao me convocar para expor, com total liberdade, a minha versão aos fatos.”
*Psiquiatra da Universidade Federal de São Paulo, psicoterapeuta e coordenador do Projeto Quixote aurolescher@gmail.com
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