Grita o obstetra do Amparo Maternal, seu sexto parto em 12 horas de plantão.
E o nenen não nasce. Está de bunda. Parto difícil, trabalhoso.
Força de cocô!
Ela chupa o ar ao redor da boca, prende o fôlego, e com todas as forças (cocô, xixi, suor e lágrimas) encolhe a barriga e nela o útero. E nele o nenen, que cospe do seu recém nascido fiofozinho um jato de mecônio, direto nos olhos fatigados do plantonista.
Então veio Bruno Jeferson, primeiro filho de Adalgiza da Silva.
Cagando no mundo.
Ele é um corpo, uma alma e um destino: atracar-se com a herança maldita da mãe.
Giza dá à luz seu filho e imagina que assim expulsa também todo o seu tormento, libertando-se do inferno.
O mocó onde Giza se refugia, quando a correria da cracolândia fica insuportável, é um terreno largado da prefeitura. Uma espécie de piques no pega-pega do dia a dia.
Por lá orbita uma tribo neandertal mais ou menos estável, na idade da pedra, na terra da pedra. Um refúgio para cagar, picar, trepar, pipar, dormir. Uns mil metros quadrados muito fedidos. Um grande terraço calçado com paralelepípedos, o mato que cresce esverdeando o chão, fragmentos de isqueiros, sapatinho de criança, um fêmur (bovino?), uma colher, uma camisinha usada, lixos diversos.
Imponente, o esqueleto de uma casa, que na sua face mais próxima à rua, ostenta paredes e telhado intactos, uma espécie de marco de resistência contra a ruína dos tempos e da humanidade. É lá que Joy exerce o seu poder, na base do carisma e se não bastar, na porrada. Uma espécie de califa de uma tribo de zumbis, ratos e morcegos. Negro da cor da beringela, mistura da melanina baiana com o cinza das ruas, cabelo rastafari e um corpo bem torneado apesar dos seus, talvez, 50 anos de vida seca. Joy dorme em cima de uma porta, pendurada horizontalmente no telhado por um intrincado trançado de cordas; os morcegos dormem de ponta cabeça; os ratos mordiscam os pés dos zumbis. Não mordiscam os de Joy pela estratégica posição de sua cama, nem os dos morcegos, porque rato não é bobo.
Do seu leito, Joy vigia o buraco dos anjos, que dá acesso ao sótão, acarpetado com jornal velho e, espalhados, um caleidoscópio amassado, uma boneca sem cabeça e um macaquinho com rabo de leão. Uma reserva matriarcal para as crianças da tribo.
Atravessando a Rua Mauá fica a Sala São Paulo, onde as pessoas sofisticadas costumam se regozijar com a melhor música erudita do mundo; claro, com todo esquema de segurança, também sofisticado, para isolar o melhor, do pior do mundo. Carros blindados, estacionamento subterrâneo, vigias bem treinados pelo Mossad, câmeras, revistas eletrônicas e antidepressivos: crack ou prozac.
Giza era um anjo aos 10 anos de idade. Um ano antes morria Dona Benê, de repente, deixando a menina sozinha neste mundo de meu Deus. Vozinha era doce apesar das privações. Uma carcaça de frango a dois reias, que seu Getúlio do açougue separava com generosos fiapos de carne, arrancava a fome da neta e dela própria. Só por hoje. Teve vida longa e morte súbita, enquanto dormia. Giza passa então a habitar as ruas do centro da cidade. Aos 13, sua capivara já é longa. Dois reais um boquete. Uma pedra na escadaria da Catedral e já era. Hóstia do Diabo na porta do inferno.
O som metálico no crânio dos noias enlaça o solo da tuba no terceiro movimento da terceira sinfonia de Beethoven. Orquestra dos Jovens de Mirandóplolis, sob regência de Zubin Mehta, fechando a celebração do Prêmio São Paulo de Literatura.
Giza tem 18 anos quando pari Pedro Jeferson.
Transmuta-se numa mulher remediada às custas de seu filho. Terceiriza seus demônios.
Mas a cobra morde o próprio rabo.
Deus é o diabo.
E ambos são vertebrados.
*Psiquiatra da Universidade Federal de São Paulo, psicoterapeuta e coordenador do Projeto Quixote aurolescher@gmail.com
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