De Hiroshima a Teerã

Coluna_Salem

Em 6 de agosto de 1945,uma bomba chamada Little Boy explodiu sobre Hiroshima. Três dias depois, uma outra, Fat Man, fez o mesmo sobre Nagasaki. Os nomes não deixam de ser simpáticos, fazem antecipar talvez dois personagens de alguma história em quadrinho, de algum cartoon. Little Boy e Fat Man mataram um número estimado entre 150 mil e 250 mil civis. Uma boa metade desses teria morrido no instante mesmo em que cada bomba explodiu.

Com a lembrança desses números, os nomes de cartoon adquirem subitamente um sabor de amargo mau gosto, denotam uma leveza no espírito dos que nomearam e lançaram as bombas impossível de sustentar, indecente.

Ainda assim, tem-se por vezes a impressão de que Hiroshima e Nagasaki teriam sido dois desastres naturais, algo como um terremoto ou um tsunami. E mesmo quando se dá a lembrança de que resultaram de atos humanos com autoria conhecida, os autores não são vistos como outra coisa senão campeões da liberdade.

E quis o destino que, alguns dias antes dos 70 anos de Hiroshima e Nagasaki, se fechasse um acordo histórico sobre o dossiê nuclear iraniano.

Foto: Reprodução/atomicbombattackofhiroshima.weebly.com
Foto: Reprodução/atomicbombattackofhiroshima.weebly.com

O mundo parece respirar mais aliviado, ainda que com cautela. A imagem que parece ocupar as mentes é a de que enfim se teria posto uma coleira no pescoço do mal.

O mundo é um lugar mais seguro porque se conteve o Irã, é o que não cansam de nos repetir.

O alívio, e também a cautela remanescente, estão fundados em verdades que todos, ou quase todos, pensam dominar a respeito do Irã: a verdade de que o Irã quer, sim, obter armas atômicas; a de que, dotado de armamento nuclear, o Irã não hesitaria em fazer uso dele; a de que o Irã apoia grupos terroristas que teriam assim acesso a artefatos de destruição em massa…

Recentemente, uma pesquisa de opinião pública teria descoberto que a maior parte da população mundial tem uma imagem negativa do Irã (www.pewglobal.org/2015/06/18/irans-global-image-mostly-negative/).

A pergunta que ninguém parece se fazer diz respeito à fonte última dessas verdades que pensamos válidas e dessa imagem negativa. Quem, afinal, nos diz o que devemos pensar sobre o Irã e sobre todas as demais coisas?

Quando tento traçar a história dessa representação do Irã por nossas bandas, valho-me das memórias pessoais. Começo pelas imagens de fausto que costumava encontrar na nossa imprensa e que traziam a família do Xá Reza Pahlevi como uma mistura local de Camelot, Coroa Inglesa e Mônaco. Uma monarquia luminosa, cheia de charme.

Não lembro que abundassem críticas a um dos regimes mais despóticos que os tempos modernos conheceram.

E logo vêm as imagens da revolução que derrubou o Xá e implantou a República Islâmica. Ali, a coloração que nos chegava era toda de medo, desconfiança e denúncias de fanatismo, e a partir de então passou a ter entre nós um sinônimo: Xiita.

Na guerra que veio em seguida, entre Iraque e Irã, estes dois nos apareciam, respectivamente, como a incorporação do bem e do mal que se digladiavam, o primeiro massivamente apoiado pelo Ocidente.

E quando, após a invasão do Kuait pelo Iraque, os crimes de Saddam Hussein contra os civis, iranianos e iraquianos, e contra o direito internacional foram ressuscitados para reclassificá-lo como representante do mal, isso não serviu para reabilitar o Irã.

Nada, na verdade, servia para reabilitar o Irã no imaginário ocidental, desde o tempo da revolução e durante todos os anos da discussão do dossiê nuclear.

O processo que leva a essa representação é complexo, mas a essência é facilmente perceptível: nós tendemos a enxergar o mundo exatamente como o establishment norte-americano nos diz que é. Há algo que nos leva a naturalizar essa visão de mundo, contra todas as evidências, por vezes.

Nossa percepção de uma revolução demoníaca não se desfaz quando sabemos que 25 anos antes de sua eclosão os Estados Unidos derrubaram um governo iraniano democrático e instalaram o Xá como um seu joguete cruel. Nem se desfaz quando sabemos que ao longo das décadas que se seguiram a 1979 os norte-americanos trabalharam intensamente para derrubar o novo regime.

E nossa percepção dos supostos riscos de um programa nuclear iraniano não é posta em dúvida nem mesmo quando sabemos que o Estado que nos atesta o perigo é o mesmo que nos mentiu descaradamente sobre um outro suposto programa de armas de destruição em massa, uma mentira que serviu para justificar a invasão do Iraque e resultou em mortes contadas em milhões.

Os mesmos senhores da verdade que nos alertam para a ameaça à paz, que resultaria de um Irã e em seguida um Oriente Médio nuclearizados, deixam reinar um soberano silêncio sobre o armamento nuclear de Israel. A coerência fica faltando a esses argumentos, ainda que poucos se deem conta disso.

Que não reste dúvida sobre isto: o Irã é um ator político que a partir da revolução e da instituição da República Islâmica se encontra no polo oposto aos Estados Unidos, a Israel e às potências ocidentais em quase todos os temas regionais e mundiais. Está também no polo oposto a várias forças regionais, à frente das quais se destaca a Arábia Saudita. A sua emergência em poder incomoda e é natural que os adversários queiram colocar freios a isso. O modo como o estavam fazendo, no entanto, carece de legitimidade porque tratava de construir falsas verdades que levariam a um ataque armado ou, na impossibilidade desse, a um estrangulamento da economia, uma deterioração do tecido político e social, com o intuito de derrubar o regime e fazer o Irã “mudar de lado”.

Pois bem, não funcionou. O Irã conseguiu se impor como um adversário com que se terá que lidar de modo diverso, aceitando em alguma medida a sua vocação para ser uma potência regional.

E assim, quase que por encanto, ainda que lentamente, aquela força, aquela credibilidade naturalizada, que nos fez temer uma afirmada propensão iraniana para o mal e para o genocídio, a mesma que ainda nos impede de ver aqueles dois momentos singulares de 1945 como criminosos, começa a permitir que sobre o Irã se construa imagens mais benignas.

*Salem Nasser é professor de Direito Internacional da FGV Direito SP.


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