O ano novo na França começou meio velho. A questão política que agita o governo é a chamada « déchéance de nationalité », traduzível por « perda da nacionalidade », neste caso a ser aplicada a um terrorista nascido francês que tenha sido condenado e que tenha dupla nacionalidade. Ele perde a francesa. Fica com a nacionalidade tunisina, argelina, marroquina… A outra nacionalidade.
A ministra da justiça, Christiane Taubira, é contra esta medida, mas o primeiro ministro e o presidente da República vão mudar a Constituição para aplicá-la. Christiane é uma mulher negra, nascida na Guiana Francesa, esposa de um militante anticolonialista. Ela sabe na pele o que é ser francesa e não branca. O que é ser francês e não cristão. Ela teme, e com razão, que esta medida coloque em causa o princípio do direito do solo na França, criando assim uma ruptura entre os cidadãos.
Entre os “verdadeiros” franceses e os outros. Quando na verdade, a República tem isso de bonito que ela abriga a todos em pé de igualdade, quaisquer que sejamsuas origens ou religiões. O que o Primeiro Ministro Manuel Valls pretende com esta medida é dizer : para você ser francês tem que merecê-lo. Ou, se você é capaz de machucar a França, então deve ser punido como não-mais-francês. Acontece que se o terrorista não tem a dupla nacionalidade, se ele é só francês, não se pode retirar dele a sua única nacionalidade tornando-o apátrida, e portanto, ele continua sendo francês !
Lembro-me de quando adquiri a nacionalidade francesa. Depois de vinte e tantos anos morando na França, a pergunta que fiz para a funcionária que me entrevistou no procedimento de naturalização foi: podem um dia me retirar esta nacionalidade ? Ela respondeu que não, claro que não ! Eu estava adquirindo aquilo para sempre. Mas como sou filha de húngaros judeus, aprendi que a História infelizmente tem a capacidade de dar e retirar direitos, ao ponto que uma Pátria pode passar a considerar seus filhos como inimigos de uma hora para outra, permitindo a sua exterminação. As leis, os regimes, as constituições mudam, e a questão gira sempre em torno da dificuldade de aceitação da alteridade, conceito que desenvolveu o filósofo Emmanuel Levinas em sua obra.
Temo que esta medida simbólica que o governo de Hollande está aplicando funcione exatamente ao contrario do que eles esperam, pois ela abre uma brecha no coração dos binacionais em que se insinua a dúvida sobre o sentimento de pertencimento a uma comunidade. Traduzindo : se por eu ser binacional duvida-se de que eu seja realmente francês, então prefiro não sê-lo, melhor me identificar com a minha outra pátria, minha outra religião, pois aqui eu sou um cidadão de segunda categoria, e a minha verdadeira raiz não é aqui… Nesta brecha insinua-se o veneno do ódio, e do ódio nasce o desejo de destruição do outro. Daquele que não me aceita.
Neste momento em que a Terra inteira está se fanatizando, em que o Mein Kampf de Hitler entrou no domínio público, em que Daech continua sua obra de dominação passo a passo, em que a extrema direita ganha espaço na politica europeia, em que um professor usando kipá é agredido em Marseille por um menino de 15 anos radicalizado, invoco os homens de boa vontade e cito Levinas para que meditemos juntos:
“O Outro metafísico é outro de umaalteridade que não é um simples inverso da identidade, nem de uma alteridadefeita de resistência ao Mesmo, mas de uma alteridade anterior a toda a iniciativa, a todo o imperialismo do Mesmo; outro de uma alteridade que não limita o Mesmo, porque nesse caso o Outro não seria rigorosamente Outro: pela comunidade da fronteira, seria, dentro do sistema, ainda o Mesmo. O absolutamente Outro é Outrem, não faz número comigo. A coletividade em que eu digo ‘tu’ ou ‘nós’ não é um plural de ‘eu’. Eu, tu, não são indivíduos de um conceito comum.” (extraído de LEVINAS, E. Totalidade e infinito. Trad. José Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 1988, p.26.)
*Adriana Komives, brasileira de origem húngara, 51 anos, 31 em Paris onde estudou cinema e exerce desde então as profissões de montadora e roteirista. Consultora em montagem de documentários nos Ateliers Varan, la Femis, DocNomads, ensina o ofício de montagem no Institut National de l’Audiovisuel e roda o mundo trabalhando em oficinas de realização documentária
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