O Brasil de 2016 inventou um novo padrão de normalidade. Tudo vai mal, mas, estranhamente, tudo parece bem. Desde que a presidente Dilma foi removida do governo, não há um único aspecto da vida pública brasileira que tenha melhorado. Das Olimpíadas à criminalidade, da inflação às contas do governo, tudo piorou ou permanece ruim. Entretanto, nos sentimos como um país que vai no caminho certo. Por quê?
Na primeira quinzena de julho, a inflação subiu 0,58%. É péssima notícia, bem pior do que se previa, mas a informação circulou discretamente, como coisa de especialistas. Antes do afastamento de Dilma, inflação ruim era manchete de jornal e motivo de intermináveis debates no rádio. Agora, não.
É assim que se cria a sensação de normalidade. Com silêncio. Na quarta-feira, o interino nomeou como superintendente do Ibama uma ex-deputada, cassada por atacar com panfletos mentirosos os adversários eleitorais. Vanessa Damo saiu do limbo, para onde fora levada pela delinquência, para um cargo importante no governo federal. Algum escândalo? Nenhum. Está tudo bem, tudo normal.
O mesmo padrão se repete em toda parte. O que sob Dilma era motivo de alarme e preocupação, agora é tratado como rotina. O interino fez saber que vai queimar parte das reservas orçamentárias para evitar que o governo pare, devido à queda de arrecadação. Silêncio. Se Dilma fizesse o mesmo, seria acusada de pedalar e gastar irresponsavelmente. Temer jurou que iria cortar, continua gastando, está tudo bem.
Aos poucos, a sociedade começa a viver a sensação de que não há mais crise, de que o país voltou ao normal. Crise, afinal, é coisa difícil de definir. Se trata de uma percepção coletiva, que pode ser construída ou desconstruída. Estamos, aparentemente, em plena desconstrução.
O Banco Central anunciou na quarta-feira que a taxa de juros básica continuará em 14,5% ao ano. É um número obsceno para um país em recessão, a maior taxa de juros do mundo. Com ela, enriquecem bancos e rentistas, e se impede a retomada do crescimento. A decisão do BC é necessariamente polêmica. Ainda assim, não se ouvem críticas. A elite brasileira, viciada em rendimentos financeiros, aplaude a medida. Para quem tem muito dinheiro, juro alto não é problema. É solução.
Soube-se ontem que a Folha de S.Paulo extraiu de uma pesquisa em que 62% dos entrevistados pediam eleições presidenciais a manchete de que 50% dos brasileiros preferem Temer no governo. O Datafolha fez várias perguntas e o jornal publicou aquela que ajudava a causa do interino. O país ficou com a impressão de que o vice e seu governo são mais estimados do que realmente são. Com esse tipo de material também se faz a governabilidade.
A moda, nas últimas semanas, é falar do talento parlamentar de Temer para explicar a calmaria em torno do governo interino, mas a verdade é outra.
Há duas semanas, o Ministério Público do Distrito Federal disse que não houve crime da presidente Dilma nas tais pedaladas fiscais. É uma decisão oficial que corrobora a conclusão da perícia feita por técnicos do Senado no final de junho. Deveria encerrar a conversa sobre impeachment por ausência de delito. Mas não. A decisão do procurador foi tratada discretamente, ninguém ouviu falar, não aconteceu. A ameaça a Temer foi varrida para baixo do tapete e o impeachment prossegue célere no Senado. O interino não tem talento. Ele tem amigos poderosos e a sorte de ser uma alternativa ao PT.
Entre os seus amigos – ou melhor, entre os inimigos públicos do PT – está o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal. A ele caberá definir o futuro de Temer e Dilma quando chegar ao Tribunal Superior Eleitoral a campanha de 2014, aquela que elegeu a presidente e seu vice infiel. Quem apostar que o resultado do julgamento será favorável a Temer e contrário a Dilma tem boas chances de ganhar, quaisquer que sejam os fatos. A lei não deveria ser assim, pessoalmente previsível, mas é, ao menos na normalidade à brasileira.
Talvez essa atmosfera de farsa e arranjo se dissipe em agosto, depois da votação no Senado, quando se imagina que o interino receberá o título de presidente. À falsa normalidade, antecedida por um falso processo de impeachment, sucederá uma falsa presidência, potencialmente desastrosa para a democracia e a sociedade brasileira. Mas é isso que desejam ardentemente a elite e boa parte da classe média.
Abraham Lincoln dizia que se pode enganar a todos por algum tempo e a alguns por todo tempo, mas não a todos por todo tempo. Temer e seus aliados querem dois anos para reverter o processo de inclusão social esboçado pelo PT e retornar o Brasil ao velho molde da oligarquia e do mercado, o do país para 20%. É capaz que consigam.
* Ivan Martins é jornalista, escritor e colunista do site da revista Época
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