Raduan Nassar falou um dia de seu encontro de juventude com os sofistas, “aqueles trapaceiros da Antiguidade, que se encarregaram na época de desmoralizar o uso da razão”, e falou da sua crença de que “a razão não é seletiva, ela traça de tudo”, seria mesmo uma “belíssima putana”.
Lembro-me disso toda vez que encontro um texto bem urdido, com ares de grande inteligência, mas que nos vende nada mais do que ar quente, senão talvez um pouco de veneno.
E foi assim que vivi a leitura de “Israel não é Boycott” (O Globo, 28 de maio de 2015). O texto saca muito cedo uma referência a Spinoza e logo uma outra a Hegel, conta-nos a pequena história que teria dado origem à palavra boicote e finaliza com a acusação aos que pedem que se boicote Israel de não serem norteados nem pela virtude, nem pela razão ou a sabedoria, mas pela união torpe da ignorância com a estupidez.
A pequena história nos diz ter sido o senhor Boycott o capataz que, encarregado pelo seu patrão, o proprietário de terras, de aumentar os aluguéis, foi banido da comunidade, pelos locatários, os donos de lojas e até mesmo o padre. Moral da história? Que não adiantou nada a medida drástica já que a virtude estava no acerto inelutável entre proprietário e locatários.
Afora a pulga que me perguntava ao ouvido se o autor queria com isto nos dizer que Israel, não sendo o Boycott, é na verdade o proprietário da terra e os palestinos os locatários, meu verdadeiro assombro vinha do fato de que um desavisado, lendo o texto, não faria ideia de por que alguém quereria boicotar Israel.
Um texto que denuncia a falta de virtude, de razão e de sabedoria, que acusa a ignorância e a estupidez, que aponta o dedo para a injustiça do boicote e sua inutilidade, não se refere uma única vez a alguma destas coisas: ocupação, apartheid, segregação, muro de separação, assentamentos, expropriação, prisões arbitrárias, restrições de movimento e de instalação, a lenta mas certa limpeza étnica…
Estava eu ali digerindo o ar quente quando um amigo me fez recordar a famosa foto em que uma criança se recusava a dar a mão ao general presidente. Ele me lembrou que o símbolo, independentemente das razões reais da recusa, era o de que não se deve estender a mão à injustiça.
Os chamados ao boicote contra Israel nos interpelam, fundamentalmente, perguntando-nos se diante desta singular injustiça, desta magnífica injustiça, queremos realmente não apenas lavar as próprias mãos, mas também, com nossas mesmas mãos, lavarmos o rosto do algoz diante do mundo.
É com esta pergunta que se dirigiram nestes dias Roger Waters, Paulo Sérgio Pinheiro e tantos outros a Gilberto Gil e Caetano Veloso, que pretendem se apresentar em Israel.
O fato desses apelos não terem ainda surtido qualquer efeito é a prova de quão ingrata é a missão de quem aponta para esta injustiça específica. Há um fenômeno no mundo que erige em torno de Israel um muro de proteção, um filtro que higieniza o crime, transforma em pária o critico e faz do criminoso a mais aceitável das companhias.
Ainda assim, estamos como a menina diante do general.
Não sendo especialista em Caetano ou em Gil, não sei dizer quantas e quais páginas de suas biografias falsificarão se apresentando no país do apartheid que resta. Outros saberão, e eles também.
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