A sociedade brasileira não se espanta e não se incomoda com o racismo, mas é capaz de discutir encarniçadamente qualquer iniciativa que tenha por objetivo mitigar suas consequências.
Famílias negras mendigando nos faróis das grandes cidades não provocam indignação, assim como a morte diária de jovens negros nas mãos da polícia ou a total ausência de pessoas negras em ambientes culturais ou econômicos de elite. A exclusão e a criminalização de 53% da população brasileira que se define como negra ou parda parece natural. Faz parte da paisagem brasileira tanto quanto as areias de Copacabana e as baianas do acarajé.
Mas basta que o Estado tome qualquer medida em benefício da maioria discriminada para que a sociedade bem pensante se rebele.
Foi assim com a adoção de cotas raciais nas universidades e no serviço público, aprovada no Supremo Tribunal Federal em 2012. Quem lesse a imprensa da época teria a impressão que a universidade e o próprio tecido da sociedade brasileira seriam destruídos pela presença dos cotistas de pele escura. É o racismo inverso, se dizia. Vai suscitar a violência racial. Vai cristalizar o racismo em vez de eliminá-lo. Vai destruir o princípio da igualdade, institucionalizando a ideia ultrapassada de raça.
Nada disso aconteceu, evidentemente, mas ninguém pediu desculpas pelas previsões apocalípticas infundadas. Por conta da Lei de Cotas, entraram nas universidades federais desde 2013 quase 150 mil estudantes negros, que não teriam acesso ao ensino público superior de outra forma. São 150 mil jovens e famílias cujas vidas foram alteradas para melhor, num gesto de reparação histórico pequeno, mas cheio de significado, que só os racistas e os tolos podem deplorar.
Esta semana, o tema das cotas voltou ao noticiário travestido novamente de escândalo.
Desta vez, o objeto da indignação bem pensante – manifestada em editorias, artigos e reportagens – foi uma norma do Ministério do Planejamento do governo interino criando comissões para verificar a autodeclaração de quem se diz negro com a finalidade de ingressar por cotas no serviço público. Uma lei criada em 2014 assegura que 20% das vagas de concursos sejam destinadas a pretos e pardos.
As “comissões raciais” – como foram maliciosamente apelidadas pela imprensa – teriam a finalidade de evitar que malandros brancos tentem se passar por negros para obter uma vaga. O governo interino alega que as denúncias de fraude desse tipo são frequentes e os ativistas do movimento negro afirmam que fraudes são usadas escandalosamente na imprensa para desmoralizar a ideia das cotas. Já aconteceu algumas vezes.
O governo interino poderia deixar as coisas como estavam – o que talvez fosse a melhor ideia – ou intervir com a finalidade de tentar eliminar as fraudes. Optou pela segunda, e deu material para os bens pensantes fazerem, de novo, o que sempre fazem com respeito a esse assunto: ridicularizar as tentativas de reparação pelos 300 anos de escravidão no Brasil, enquanto ignoram, cinicamente, os problemas sociais e econômicos deixados por ela.
A escravidão é responsável direta pelo atraso, pela pobreza e pela violência corrente no País. Sua herança constitui a espinha dorsal da sociedade brasileira. Por ela somos o desastre que somos. Não existe país próspero em que mais de metade da população seja discriminada, subeducada e vítima sistemática de violência. Ao excluir a maioria dos brasileiros das boas escolas e dos bons empregos, a herança escravocrata faz da meritocracia uma ideia ridícula e da competição capitalista, uma piada. Qual o mérito de ter nascido entre os que têm acesso à saúde, educação, moradia e cultura de qualidade? Em que condições os demais brasileiros vão competir?
Nada disso ocupa a elite bem pensante brasileira. Vivemos nossas vidas tranquilamente, em meio ao racismo e à discriminação. As empregadas entram e saem das nossas casas enquanto seus filhos são justiçados pela polícia na periferia e nas favelas. No Rio de Janeiro, 77% dos mortos pela polícia são pardos ou negros. Em São Paulo, o número de negros mortos pela polícia é três vezes maior que o de brancos. E daí?
Continuamos a falar das contas públicas, do ajuste fiscal e da necessidade de um estado menos paternalista. Somos modernos como os sinhozinhos que estudavam na Europa no século XIX e voltavam ao Brasil para defender a “impossibilidade econômica” de acabar com a escravidão.
Um amigo me contou outro dia que um conhecido dele, rapaz negro de classe média, morador da zona oeste de São Paulo, deixou de praticar ciclismo nas ruas da cidade porque, sistematicamente, a polícia o parava para perguntar onde ele tinha roubado a bicicleta cara que usava. Além de se cansar da humilhação, ele teve medo de levar um tiro.
Dias atrás, a revista Época fez uma entrevista com uma ativista negra americana pelos direitos civis em visita ao Brasil . Ela contou que, ao tomar café no hotel chique em que estava hospedada, foi abordada cinco vezes por funcionários que queriam confirmar sua condição de hóspede. Numa praia da Bahia, foi confundida com prostituta. Estava chocada com a diferença entre a imagem de harmonia racial que o País projeta no exterior e aquilo que realmente acontece em nossas cidades. Nós não nos chocamos. Mal pensamos no assunto, na verdade.
O racismo que a amparou a escravidão, e foi reforçado e ampliado por ela, continua vivo entre nós. Ele explica a indiferença da sociedade brasileira em relação ao destino de seus cidadãos de pele escura, cabelos crespos e traços africanos. Ele justifica o comportamento dos porteiros, dos garçons e dos policiais que têm a discriminação racial como método de trabalho. Ele ajuda a entender porque as professoras esperam menos de seus alunos negros e dão a eles menos atenção que às crianças brancas. Ele elucida a ausência de negros nos ambientes corporativos, acadêmicos e jurídicos. Ele explica a solidão social dos poucos que ascendem.
A combinação de escravidão e racismo, na verdade, explica quase tudo que deu errado no Brasil. Mesmo assim, não parece ser um problema. O problema, pelo que se deduz da gritaria, são as cotas raciais e os “comitês raciais” criados para implementá-las. O problema, como se dizia no século XIX, são os pretos. Quer dizer, a maioria da população brasileira.
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