O Fim da neutralidade

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Deputados comemoram a aceitação do processo de impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff. Foto: EBC

Qualquer pessoa nota a insistência de alguns meios de comunicação em negar a palavra “golpe”. Obviamente, seus donos sabem que mudar a palavra não altera o conteúdo. Mais do que uma disputa pelo significante, assistimos à inútil busca de uma neutralidade recuperadora.

Mas a mídia não foi o artífice único do Golpe de Abril de 2016.  Ela esteve num dos vértices do  triângulo da reação elitista. Os outros dois foram preenchidos pelos políticos e pelo aparato jurídico-repressivo.

Os dois primeiros são por natureza explicitamente parciais. Seus objetivos no golpe eram diferentes, porém complementares. A Mídia queria estender seus privilégios e manter o seu monopólio (ainda que os governos petistas não fizessem nada contra ela). Os políticos associaram-se gostosamente à mídia golpista porque ela jamais quis, evidentemente, atacar a corrupção sistêmica, mas apenas aquela que podia (com provas ou não) ser atribuída ao PT.

No seio do aparato jurídico-repressivo é que se notava uma discrepância. Alguns delegados  da Polícia Federal, procuradores e um juiz que adquiriu enorme apoio midiático, jamais esconderam seu partidarismo. Que a leitora e o leitor vejam bem: o partidarismo  não é o de um partido, mas o do antipetismo. E este, por sua vez, não é contra o PT especificamente, mas contra o projeto e as classes sociais que ele representou.

Ainda há Juízes em Curitiba?

No entanto, dos três vértices do golpe, o judiciário é o mais sensível à perda de sua aparência de neutralidade. Numa República, a dominação de classe precisa seguir ritos. Eles existem para proteger as pessoas não da injustiça que também é social e econômica, mas da aparência de injustiça. Ou seja, se um juiz segue um mesmo procedimento para todos, estamos diante de uma autoridade legal e formal e não perante o arbítrio.

É conhecida a anedota do dramaturgo francês François Andrieux, O Moleiro Despreocupado. Ela lembra o tema do filme de Kleber Mendonça Filho, Aquarius. Frederico da Prússia, o Grande, quis comprar um Moinho que impedia uma obra de expansão de seu castelo. Como o moleiro não o vendia por nada deste mundo, o Rei ameaçou tomar-lhe a  propriedade. Então o moleiro disse a célebre frase: “Ainda há juízes em Berlim”.  Quer dizer: acima do monarca, existe uma norma de conduta impessoal que é a lei.

Curiosamente, os operadores do golpe usaram de forma distorcida e cínica a ideia de que finalmente grandes personagens da vida pública e de empresas estavam sendo punidos. O que seria um avanço. Ainda que não houvesse a seletividade das punições, o que se verificou desde a primeira tentativa de golpe contra Lula em 2005, haveria que se lembrar  que o devido processo legal deveria servir mesmo para grandes políticos e empresários, já que não estamos numa Revolução social como em 1789 ou 1917. Na verdade, tendemos muito mais a uma contrarrevolução.

Seletividade de acusações, vazamentos ilegais de depoimentos na imprensa, escutas ilegais, tortura psíquica de presos que eram obrigados a delatar qualquer coisa (desde que envolvesse o PT), prisões espetaculares e preventivas ao arrepio da lei, uso da “teoria” do domínio do fato e a recusa de habeas corpus foram apenas alguns dos meios ilegais. Isso apenas prenunciava a obra do impeachment: afinal, Dilma Rousseff foi apeada do poder sem crime de responsabilidade e com graves transgressões da forma do processo. É uma mentira que aquilo se deu “dentro da Constituição” porque tudo foi referendado pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Não foi a primeira vez que o STF apoiou o arbítrio. Ele autorizou a deportação de Olga Benário Prestes para as câmaras de gás nazistas, por exemplo.

Por tudo isso surpreendeu a ingenuidade ou o medo que dirigentes do PT e do Governo demonstraram. No início da Operação Lava Jato, até mesmo petistas e esquerdistas de muitos matizes ainda acreditavam que havia juízes em Curitiba. Para os crentes o mito desabou em dois momentos em que o setor jurídico do golpe apostou alto… e venceu, nas palavras de Jessé Souza em seu livro “Radiografia do golpe”. A condução coercitiva do líder mais popular da história do Brasil gerou um clima de perigosa exaltação social. E, por fim, a escuta ilegal de uma conversa privada da presidenta da República colocou em risco a segurança do Estado Nacional.

Depois do Golpe

Um jornalista francês contou-me na época que até aquele momento acreditava na operação Lava Jato. Porém, quando soube da escuta ilegal autorizada por um juiz de primeira instância simplesmente ficou estarrecido: “Em anos de cobertura em vários países, eu nunca vi algo assim”. Indaguei-lhe se na França algo assim acontecesse qual seria a punição. Ele me respondeu que em seu país isso jamais aconteceria.

Uma vez derrubada a presidenta Dilma Rousseff, os assaltantes do poder precisaram se entender. Os políticos, em sua tradicional visão curta e envolvidos até o pescoço em crimes, quiseram o fim das investigações, como deixou claro um ex-ministro apanhado em uma gravação. Os juízes, policiais e procuradores se dividiram entre seu papel de novos tenentes impolutos que iriam tomar o poder em suas próprias mãos para regenerar o Brasil e os pragmáticos que logo compreenderam que se tratava apenas de derrubar um projeto político que parecia invencível nas urnas e, de contrabando, conquistar um vultoso aumento salarial em meio a uma das piores recessões já registradas em nossa história.

Só uma coisa ainda podia unir os três vértices golpistas. O gran finale seria a prisão de Lula. Afinal, o golpe não foi dado para que em 2018 o PT voltasse ao poder em eleições normais.

Alternativas

A Direita tinha algumas alternativas que o próprio PT lhe ofereceu, mas dificilmente o partido teria tido forças para evitar a sua queda.

Se o PT tivesse escolhido um vice do partido para Dilma Rousseff em 2014, não haveria impeachment. Mas viria uma cassação da chapa pelo TSE. Da mesma forma se o custo político de uma condenação de Lula fosse alto demais, ainda haveria a oportunidade de implantação do parlamentarismo, o que afastaria definitivamente a influência popular sobre o poder, já que o executivo é a única instância de governo permeável à vontade popular como a história brasileira mostra à saciedade. O Congresso é a representação invertida da sociedade, onde empresas, igrejas e grupos criminosos exercem seu poder de compra. O judiciário e as cúpulas policiais constituem um estamento fechado, sem contrapesos internos, e que sequer é controlado externamente.

Depois da noite dos horrores do golpe congressual, o dia seguinte trouxe uma má notícia até para os setores médios antipetistas. O novo governo usurpador tinha prometido o ataque à previdência social, o aumento da jornada de trabalho, a terceirização de todas as atividades e um ajuste fiscal estrutural para derrubar os investimentos sociais por mais de vinte anos!

Não parecia tarefa fácil mesmo cassando Lula, o qual ainda liderava todas as pesquisas eleitorais mesmo depois de anos de massacre midiático. Ou mesmo cassando todos os líderes da esquerda para que ela não tivesse qualquer candidatura viável em eleições presidenciais. Quem ataca 50 anos de direitos trabalhistas consolidados não pode ter pretensões eleitorais. Então o que eles queriam com o golpe?

Poucos sabem que depois de aceitar a impertinência do moleiro, Frederico da Prússia resolveu praticar um outro jogo de príncipe: esqueceu o moinho e resolveu roubar uma província. E, assim, seu capricho o levou à guerra de conquista da Silésia. Poderíamos aqui trocar, mesmo a contragosto, a Silésia por Brasília. E o moinho por um pedalinho. Não em terras prussianas, mas na pouco valorizada Atibaia. Perceberíamos que no Brasil desde 2013 tivemos uma guerra aberta pela conquista do poder.

Talvez por isso nem o moleiro vá se salvar. Eles vão roubar o moinho e quantas províncias puderem.

"Não foi a primeira vez que o STF apoiou o arbítrio. Ele autorizou a deportação  de Olga Benário Prestes para as câmaras de gás nazistas, por exemplo."
“Não foi a primeira vez que o STF apoiou o arbítrio. Ele autorizou a deportação de Olga Benário Prestes para as câmaras de gás nazistas, por exemplo.”

 


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